Em tempos de manifestações antidemocráticas, convém lembrar que quase todas as ditaduras pretendiam ostentar alguma aparência de legalidade. Parece haver sempre algum jurista disposto a colaborar para tanto. Francisco Campos desempenhou o papel duas vezes. Em 1937, redigindo a Constituição outorgada que deu verniz jurídico ao Estado Novo de Vargas, e em 1964, na feitura do Ato Institucional que se seguiu ao golpe militar. O registro histórico importa especialmente porque uma das bandeiras dos manifestantes é o artigo 142 da Constituição, que trata das Forças Armadas. Imaginam, os saudosos do autoritarismo, que o dispositivo permitiria uma intervenção militar. Pior que isso – encontram eco em alguns juristas. Erram uns e outros, talvez buscando antecipadamente justificar o injustificável. Diz o artigo: “As Forças Armadas (…), sob a autoridade suprema do Presidente da República, (…) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”.
Na equivocada leitura que fazem do grifado acima, enxergam permissão para que as Forças Armadas decidam se e quando agirão visando “à garantia dos poderes constitucionais”, já que a ressalva “por iniciativa de qualquer destes” se referiria apenas ao que a sucede na frase: “da lei e da ordem”. Trata-se de esforço interpretativo que esbarra (não bastasse o Estado democrático de Direito) na própria literalidade, já que “dos poderes constitucionais” é antecedido por “sob a autoridade suprema do Presidente”. As Forças Armadas, portanto, defendem a Pátria e garantem os poderes constitucionais por determinação do Presidente da República, como em caso de guerra ou de agressão armada estrangeira. Quanto à garantia dos poderes constitucionais, apenas o impedimento de seu livre exercício a justifica, seja por intervenção federal em estado-membro, seja em virtude de “grave e iminente instabilidade institucional” (estado de defesa) ou de “comoção grave de repercussão nacional” (estado de sítio). Todas, hipóteses disciplinadas na Constituição. Fora disso, é o arbítrio.
Admitir que as Forças Armadas pudessem, a seu critério, desempenhar a função de mediar conflitos entre Poderes, seria conceber um poder “de fato”, acima da Constituição e, portanto, do povo, de quem emana o poder. Isto, todos deveriam reverenciar, desde as revoluções liberais dos séculos passados, cujos ideais forjaram a democracia. (E as mais belas páginas das Forças Armadas foram escritas com sangue, na defesa exatamente desses valores democráticos, por mais de 25 mil patriotas que cruzaram o Atlântico para combater o nazifascismo. Quase 500 lá tombaram). Não há Poder Moderador no Brasil. Já houve, durante a monarquia, personificado no Imperador. Deixou de haver com a República, na qual a Constituição não precisa de tutor.
Procurador-Geral do Ministério Público de Constas, Geraldo Da Camino
Publicado originalmente no Correio do Povo