Porto Alegre, sábado, 23 de novembro de 2024
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Cannabis: "Precisamos olhar para a ciência com olhos de cura", afirma Patrícia Villela Marino, presidente do Instituto Humanitas 360; por Felipe Vieira

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Patrícia Villela Marino, presidente do Instituto Humanitas 360.

 

 

Em plena pandemia e com os holofotes voltados às eleições municipais, uma relevante pauta de Saúde Pública está para ser analisada em votação no Congresso, sem o devido espaço. Familiares de pacientes e médicos, ativistas de entidades civis, após anos de luta silenciosa nos bastidores do poder, conseguiram colocar em debate o uso medicinal da cannabis.

Esse foi o tema da entrevista que participei no Especial BandNews, com Eduardo Castro e Marcello D’Ângelo, onde entrevistamos Patrícia Villela Marino, co-fundadora e presidente do Instituto Humanitas 360. Eles estão em diversos países das Américas em projetos e estudos para redução da violência e melhoria na qualidade de vida. Promovem o engajamento dos cidadãos e defendem a transparência das instituições, além do fomento à pesquisa. É uma organização sem fins lucrativos sediada em Denver (EUA), com escritório regional em São Paulo (Brasil) e conselheiros e colaboradores na Colômbia, Chile, Uruguai, México e Guatemala.

Patrícia é bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, estudou Filantropia e Terceiro Setor na J. F. Kennedy School of Government, da Universidade de Harvard. Integrou o conselho fundador dos Global Shapers do Fórum Econômico Mundial e liderou a criação da Plataforma Latino-Americana de Políticas de Drogas (PLPD).

Preocupada em jogar luzes no tema, Patrícia não gosta de usar  a palavra maconha. Didaticamente explica que o correto para qualificar o repertório da sociedade e direcionar o debate para a saúde e justiça social evitando desviar para ideologia, atribuição de culpa e preconceito, é usar Cannabis para uso Medicinal”.  O tema complexo exige olhar sistêmico e requer disseminação de cultura e constante informação para educação. Quando falamos de “Descriminalização do Uso Recreativo” também devemos falar de Cannabis e suas espécies . “A maconha não serve nem para um nem para o outro. Só serve para fortalecer o crime organizado, fragilização do conhecimento, divisão da sociedade fomentada pelo preconceito. Quanto mais qualificarmos a Cannabis e menos associarmos com a droga educamos a sociedade naquilo que cura e não naquilo que engana e destrói”, diz Patrícia.

“Nós precisamos olhar para a ciência com olhos de cura. Precisamos olhar como ferramenta com a finalidade de salvar vidas. Precisamos olhar para a história do Brasil como um país que foi extremamente pioneiro em matéria de ciência, precisamos reconhecer nossas riquezas e a enorme capacidade que os nossos cientistas têm em dar vida e qualidade de vida”, afirmou a presidente do Humanitas 360. Segundo ela, é necessário que a sociedade enxergue a cannabis como planta, sem polarizar a situação que vem sendo tratada de forma ideológica. “Quando olhamos para a situação com olhos punitivos, já estamos olhando para um subproduto”. Patrícia destaca que a ciência e os médicos já comprovaram os altos poderes curativos e terapêuticos da cannabis para situações em que a indústria farmacêutica ainda não encontrou solução. “A solução seria, por exemplo, crianças que sofrem de epilepsia terem de tomar cinco a sete remédios diários, e as famílias serem escravizadas com orçamento mensal enorme, enquanto a ciência e os cientistas brasileiros, produto nacional, já comprovaram que existe sim, poder curativo e restaurador do sistema nervoso, poder de melhoria da qualidade de vida dessas famílias, no subproduto derivado da cannabis?”

O abre-alas“Ilegal, a vida não espera“, é o nome do documentário que escancarou o tema e abriu as portas para o debate na Câmara dos Deputados, onde tramita o projeto sobre o uso medicinal do canabidiol, um dos 70 fitocanabinóides presentes na planta. O filme de 2014 teve direção de Tarso Araújo e Raphael Erichsen, realizado em parceria com a revista Superinteressante. Patrícia atuou na produção do longa metragem que aborda o uso da erva para fins terapêuticos, ilustrado com as histórias das famílias que lutam contra o preconceito e a burocracia para usar legalmente esses remédios importados em busca de alívio para dores crônicas, crises epilépticas e efeitos colaterais da quimioterapia.

No filme produzido por Patrícia está demonstrada a situação de Katiele Fischer, mãe de Anny, menina de cinco anos que possui uma doença rara incurável, a síndrome CDKL5. Anny sofre com convulsões e a única substância capaz de produzir efeitos é o CBD, derivado da cannabis sativa, proibida no Brasil. O espectador acompanha a saga da família Fischer na tentativa de driblar burocracias e liberar a autorização junto à Anvisa importar o medicamento. Outra paciente apresentada é Juliana Paolineli. Ela sofre com problemas crônicos na coluna lombar e isso é amenizado com a vaporização de maconha, cujos efeitos terapêuticos aliviam suas dores.

Por que o debate sobre o tema é importante? Justamente para que a universalização seja alcançada. Se houvesse uma produção local para fins medicinais, esses medicamentos poderiam ser oferecidos pelo SUS e vendidos sob prescrição médica em farmácias a custo mais acessível, se comparado ao valor exorbitante das importações. A maioria da população brasileira é de baixa renda e, portanto, o uso do canabidiol torna-se um problema para as pessoas que sofrem de doenças neurológicas e não têm condições de arcar com o tratamento, embora as assistências farmacêutica e de saúde estejam previstas na Constituição. Se aprovada em Brasília e regulamentada, a descriminalização e a legalização da cannabis para fins medicinais pode beneficiar milhares de famílias.

Enquanto a Anvisa não regulamenta o plantio para uso medicinal, aumentam as demandas judiciais. Essa ausência de regulamentação gera insegurança em médicos e pacientes. A Constituição proíbe o uso, posse, aquisição e transporte da cannabis, classificada entre as drogas ilícitas. Já os remédios à base de canabidiol, em tese, poderiam ser importados mediante solicitação à Anvisa, que decidiu retirar a substância da lista de proibições. Na prática existem impasses, mas a agência diz que está buscando uma forma de viabilizar o uso.

Patrícia Villela Marino

Segundo Patrícia Villela Marino, os debates sobre o lado mais espinhoso, que é o consumo recreativo adulto, precisarão acontecer em algum momento. Como ainda é a droga ilícita mais consumida no mundo. Países como Portugal, Holanda, alguns estados dos Estados Unidos, Uruguai e muitos outros já legalizaram esse tipo de uso recreativo adulto. Existe enorme pressão da indústria também, empresas como Bayer e Monsanto possuem patentes de muitas variedades cultivadas para os usos medicinal e recreativo. Por óbvio, eles querem trazer isso para o enorme mercado brasileiro. Num cenário hipotético, o parque industrial fumageiro em Santa Cruz do Sul, território gaúcho, seria ideal para a produção da cannabis legalizada.

De acordo com uma pesquisa sobre o impacto no comportamento do mercado consumidor, regulação do controle de qualidade e credenciamento dos pontos de venda, que considera o resultado econômico tributário da regulamentação, elaborado pelo pesquisador e advogado Luís Gustavo Delgado, existem mais de 200 milhões de consumidores em todo o planeta e o mercado consumidor brasileiro pode  movimentar R$ 5 bilhões, sem levar em conta a maconha medicinal e eventuais novos produtos derivados da erva. A arrecadação tributária representaria cerca de 40% das receitas de bebidas (R$ 16,1 bilhões), em 2014, e em torno de 60% da arrecadação com o tabaco (R$ 9,8 bilhões, em 2014). Em tese, a regulamentação poderia gerar empregos e renda, reduzir dívidas e gastos com policiamento, além dos custos no judiciário e também economia nos presídios com o fim das prisões de consumidores enquadrados como traficantes.

O mercado legalizado – No Colorado (EUA), produtos derivados e a própria erva já arrecadaram cerca de um bilhão de dólares até agosto de 2018. No Canadá, o isolamento das pessoas em quarentena fez o consumo aumentar. O país registrou uma alta de 20% nas vendas e receita de US$ 181 milhões.

Para salvar a combalida economia do país, agravada com os desdobramentos da pandemia, o Líbano aprovou recentemente a liberação do cultivo para fins medicinais e industriais. O uso recreativo segue proibido. De acordo com a revista Newsweek, a economia libanesa estava à beira do colapso quando o país começou a implementar, no início de março, medidas de restrição para combater o coronavírus. Eles esperam arrecadar US$ 1 bilhão até o final do ano. Uruguai, país vizinho, já legalizou a planta para uso recreativo e tonou-se referência mundial em exportação de produtos canábicos. A Câmara de Empresas Cannabis Medicinal do Uruguai (Cecam) estima que a exportação medicinal e o cânhamo irão atingir 120 toneladas em 2020.

A Cannabis é uma planta herbácea e o conhecimento do homem a seu respeito está estimado em no minímo seis mil anos. Na antiguidade era usada com fins medicinais por indianos, o cultivo teria migrado da Ásia para a Índia, depois para o Oriente Médio, Europa e África. Na Renascença o cânhamo tornou-se um dos principais produtos agrícolas europeus, pouco usado como entorpecente por seu baixo teor de THC. Houve a famosa Companhia do Linho Cânhamo, ou Reais Feitorias do Linho Cânhamo. Além disso, as velas das naus que trouxeram os primeiros europeus ao continente americano foram cerzidas em tecidos com fibras da planta. Por todas essas questões econômicas, mas principalmente pelas questões de saúde pública e qualidade de vida de tantas pessoas que seriam beneficiados por medicamentos produzidos a partir do canabidiol é que o assunto tem que ser debatido e votado rapidamente no Congresso Nacional.