O desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, determinou nesta terça-feira (7/1) que o especial de Natal do Porta dos Fundos, veiculado pela Netflix, seja retirado do ar. De acordo com a decisão, é “mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã, até que se julgue o mérito do agravo, recorrer-se à cautela, para acalmar os ânimos”. O magistrado disse ainda que o Porta dos Fundos “não foi centrado e comedido” ao se manifestar sobre o especial de Natal nas redes sociais.
Especialistas ouvidos pela ConJur condenaram a decisão e qualificaram a determinação como “absurda” e “sem fundamento”. Para o jurista Lenio Streck, a decisão “demonstra duas coisas: primeiro, que o Judiciário pensa que pode ditar a moral e o comportamento da sociedade; segundo, mostra o fracasso da teoria do direito no Brasil”.
“A determinação fala em ponderação de valores, coisa que não existe. Que ponderação? Quais valores? O julgador estaria falando na jurisprudência dos valores? Ou na jurisprudência dos interesses? Sim, porque da ponderação de [Robert] Alexy, com completa certeza, não é. Então, com base em que ele decidiu? Simples: com base na moral pessoal dele, julgador. Ele é o próprio fundamento. Típica decisão solipsista”, afirma.
De acordo com Alexandre Fidalgo, advogado especialista em casos envolvendo liberdade de expressão, “a decisão é sem fundamento”, uma vez que não há nada no conteúdo que justifique sua retirada do ar.
“Recentemente, essa tem sido uma prática comum no Brasil. Em novembro houve aquela decisão que censurou o livro sobre a Suzane von Richthofen, e agora uma nova determinação que barra um conteúdo que é de humor. Quer gostem ou não de um conteúdo, a liberdade de expressão deve ser assegurada, segundo a Constituição”, diz.
Para Daniel Gerber, mestre em Direito Penal e Processual Penal, “a decisão é um verdadeiro absurdo, retrato de uma censura medieval que não compreende o conceito de liberdade”.
Ainda de acordo com ele, o Brasil “não apenas impõe o crucifixo em salas de audiência como recrimina, em nome da maioria, a liberdade de expressão e, consequentemente, de crença”.
Para o professor de Direito Constitucional Rodrigo Brandão, da Uerj (Universidade do Estado do Rio), “a decisão monocrática que suspendeu a exibição do especial de Natal viola o direito fundamental à liberdade de expressão”. “Daí não decorre uma superioridade da liberdade de expressão à liberdade de religião, ambos direitos fundamentais previstos com igual ênfase pelo constituinte de 1988. Igualmente não implica conferir caráter absoluto à liberdade de expressão, esquecendo-se da natureza relativa dos direitos fundamentais.”
“A proibição estatal a que determinada igreja possua dogmas homofóbicos é tão inconstitucional quanto a censura estatal a filme que realize sátira a religião, mesmo que se considere moralmente errado tanto os dogmas homofóbicos quanto as sátiras de mau gosto”, completou.
Já a advogada Vera Chemim diverge e afirma que “a decisão trata de um conflito entre dois princípios constitucionais: liberdade de expressão e inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença”.
“O dito programa tem potencial para ferir valores morais de uma parte da sociedade, valores esses que, bem ou mal, não tem a ver com o direito positivo”, afirma a constitucionalista.
Em nota, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, criticou a decisão e disse que toda forma de censura representa ameaça à liberdades duramente garantidas.
“A Constituição brasileira garante, entre os direitos e garantias fundamentais, que ‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’. Qualquer forma de censura ou ameaça a essa liberdade duramente conquistada significa retrocesso e não pode ser aceita pela sociedade”, disse. (Conjur)