Porto Alegre, terça, 23 de abril de 2024
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Dalva e Herivelto, amor e dor; por Márcio Pinheiro*

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Eram dois astros, dos mais luminosos na constelação musical brasileira. Ela tinha nome de estrela: Dalva. Ele, o nome longo e complicado, Herivelto, que não ajudava muito. Salvava-o seu inesgotável talento. Juntos, artisticamente, se iluminavam. Juntos, na intimidade – e depois publicamente –, se destruíam. Viveram num buraco negro.

Dalva de Oliveira e Herivelto Martins foram por quase duas décadas soberanos nas rádios, nos palcos e nos discos. Ao lado de Nilo Chagas formavam o Trio de Ouro. Herivelto era o dínamo. Inventor de um samba mais ralentado, com menos batuque, próximo ao bolero, ele legou obras que até hoje iluminam o cancioneiro popular (Segredo, Ave Maria no Morro, Praça Onze, Isaura). Era ainda um produtor nato. Disciplinador, organizado, com bom gosto, que soube moldar Dalva – uma das melhores vozes de qualquer época da música brasileira – ao seu estilo.

Se artisticamente havia harmonia, pessoalmente era o caos. Herivelto era autoritário e com um prontuário de traições tão extenso quanto sua obra musical. Era um conquistador compulsivo que não respeitava pessoas – dava em cima de amigas e colegas (dele e de Dalva) – nem lugares: foi flagrado pela cunhada na cama do casal com a também cantora Isaurinha Garcia.

A briga surda dos primeiros anos virou guerra escancarada. De um lado Herivelto. De outro Dalva, que, tendo apenas a voz, ganhava o apoio de outros compositores como Ataulfo Alves, Nelson Cavaquinho, Marino Pinto e Humberto Teixeira. Com as trocas de acusações e as polêmicas nos jornais, todos saíram machucados. Dalva e Herivelto, sem dúvida. Mais ainda os filhos: Bily e o primogênito Pery, que seguiria os passos artísticos paternos e só conseguiria compreender o turbilhão em que esteve envolvido quando escreveu o livro-catarse Minhas Duas Estrelas (2006).

Em 1949, quando o ódio aflorou, Dalva tentou zerar seu passado e lançou Tudo Acabado (“Destruímos hoje / O que podia ser depois”). Herivelto respondeu com Caminho Certo (“Mas deixei o meu caminho certo / E a culpada foi ela”). Dalva contra-atacou com Errei, Sim (“Deixavas-me em casa / Me trocando pela orgia”). Herivelto revidou com Teu Exemplo (“Há muita estrela na lama / Mas eu me refiro a ti”), sendo rebatido por ela com Calúnia (“Quiseste ofuscar minha fama e até jogar-me na lama”). E assim, com acusações cada vez mais explícitas, o casal se agredia mutuamente por rádios e jornais. A briga ultrapassava fronteiras, amealhava simpatizantes para cada um dos lados e arrebanhava torcedores próximos e distantes. Depois de três anos de intensas agressões, todos estavam muito feridos – Dalva, inclusive, começando a enveredar pelo alcoolismo.

Dessa batalha sem vencedores só quem ganhou foi a música brasileira. A tragédia de um casal-símbolo entre os artistas resultou em obras inspiradas. E confirmou que uma das rimas mais óbvias e mais antigas é também das mais verdadeiras: amor e dor.

*Márcio Pinheiro, jornalista, escritor e publisher do AmaJazz