Porto Alegre, sábado, 21 de setembro de 2024
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Para lembrar (o filho escreve sobre Ibsen); por Márcio Pinheiro

Detalhes Notícia

Nunca houve nada tão característico em Ibsen Pinheiro quanto a política – nem tão antigo. Uma militância iniciada há mais de sete décadas, com uma influência preponderante da mãe, Dona Lília, e uma consciência muito precoce e imediata. O momento histórico não poderia ser mais propício: a década de 40, o fim da II Guerra Mundial, o intervalo entre os dois governos de Getúlio Vargas (o do Estado Novo e o eleito democraticamente) e a consolidação do Partido Comunista, com Luis Carlos Prestes à frente. Neste contexto, Ibsen começaria a frequentar as primeiras reuniões e os primeiros comícios, descobriria a força dos discursos e se prepararia para exercitar uma de suas maiores virtudes: a capacidade de dialogar. A militância política também seria a responsável por Ibsen se aproximar, já na década seguinte, de outras duas de suas paixões: o jornalismo e o futebol.

A partir de então, Ibsen, amparado neste tripé, construiria uma das mais ricas trajetórias entre seus contemporâneos. Foi jornalista com passagens por importantes órgãos de imprensa do seu Estado e do Rio de Janeiro. Ajudou a criar redações e viu algumas delas afundarem (porém garante ter quase certeza que não foi culpado por isso). Dividiu páginas com outros brilhantes jornalistas, ocupou quase todos os cargos na hierarquia de um jornal, levou seu talento a veículos impressos, radiofônicos e televisivos, participou de coberturas e – como passou boa parte de sua vida dentro de uma redação – lá também conheceu a mulher, Laila, com quem esteve junto por 50 anos.
Já com o futebol a paixão foi platônica. Lateral direito sem brilho, Ibsen foi ter melhor sorte fora das quatro linhas. Aí se destacou como cartola – no melhor sentido da palavra – ajudando o Internacional a quebrar uma hegemonia gremista de quase uma década e sendo decisivo na formação do grande time colorado da década de 70. Conselheiro vitalício, Ibsen até hoje é figura atuante na vida colorada.

Futebol, jornalismo e política fizeram de Ibsen um nome reconhecido e respeitado. E a consagração veio nas urnas: vereador eleito com votação expressiva, deputado estadual e deputado federal por três mandatos. No último, embalado por ótimas avaliações, por um prestígio nacional e pela destacada atuação que teve à frente da Câmara dos Deputados no processo de impeachment de Fernando Collor, Ibsen teve seu nome lembrado para novos postos: senador, governador, primeiro-ministro e – por que não? – presidente da República.

Um tsunami de mentiras, traições, equívocos, vazamentos e denúncias infundadas, alteraram este caminho e fizeram deste período – a metade final da década de 90 – o único em que Ibsen não teve um papel político mais atuante. Cumpriu seu exílio, voltou como secretário de Estado e novamente vereador até receber nova consagração nas urnas para mais um mandato de deputado federal. A volta a Brasília não poderia ser mais acolhedora. Elogiado por colegas e adversários, Ibsen encerrou sua carreira parlamentar sendo o protagonista das discussões legislativas sobre o pré-sal. Sua atuação foi ainda mais decisiva ao dar ao tema um caráter nacional e – novamente aí – sua capacidade de dialogar e buscar soluções se fez presente.

Finalizaria sua vida parlamentar com um último mandato, na mesma Assembleia Legislativa do RS que havia integrado 40 anos antes e onde também havia recebido como reconhecimento da sua trajetória de homem público a Medalha do Mérito Farroupilha, a distinção máxima da Assembleia Legislativa gaúcha. O reconhecimento de Ibsen pelos seus pares.

Mas este é o Ibsen que todo mundo conhece.

Quem conviveu com ele sabe que Ibsen era mais falante do que o normal. Também era bom piadista e contador de histórias, ainda que não gostasse de trocadilhos nem de deboches. Nas conversas, reforçava seus temas prediletos – a política e o futebol – mas também demonstrava interesse por literatura, cinema (que só via em DVD), cultura francesa e música brasileira. Neste último aspecto era bem conservador, cultuando velhos sambistas como Noel Rosa, Ary Barroso, Baden Powell, Elizeth Cardoso e – principalmente – Ataulfo Alves, mas dando pouca atenção ao que foi produzido depois que Vinicius de Moraes passou a usar cabelo comprido.
Gostava ainda de boleros, tangos, músicas francesas – embora discordasse de mim quando eu diza que a melhor canção francesa era italiana (Parole, Parole). Ele rebatia justificando que a melhor canção americana era francesa (Comme D’Habitude). Seguindo uma velha tradição familiar não tinha nenhuma intimidade com qualquer instrumento musical.

Dirigia bem embora às vezes fosse distraído. Gostava de carros, trocava-os com certa frequência e tinha um azar impressionante, escolhendo muitas vezes modelos que rapidamente saiam de linha. Via bastante TV (noticiários e seriados policiais), ouvia mais ainda rádio e era bem informado. Atualizado ciberneticamente, Ibsen era curioso com computadores e tantos outros produtos tecnológicos. Nas páginas ou nas telas, lia de tudo – de analistas políticos a obituários, passando por almanaques, comentários esportivos e fotos antigas. Futebolisticamente, ainda gostava de ir ao Beira-Rio mas cada vez mais optava pelo pay-per-view.

Saudável sem ser hipocondríaco, Ibsen nunca fez exercícios, mantendo o peso na casa dos 75 quilos por várias décadas apenas com uma dieta espartana. Gastronomicamente conservador, não se interessava por culinárias exóticas, não comia nada cru – exceto saladas e frutas – e tinha especial predileção por churrascos, sendo um ótimo assador. Como todo diabético, adorava doces. E, por conta do rígido controle de peso a que se submetia, às vezes se permitia consumir doses generosas de sorvetes, ambrosias e pudins.

Ao longo da vida, Ibsen passou por perdas (paternas, fraternas, de amizades) e desilusões mas teve saúde e coração para superar com nervosismo e algumas (poucas) lágrimas a manhã do dia 17 de dezembro de 2006 quando o Internacional bateu o imbatível Barcelona e deu aos colorados a maior alegria esportiva que todos poderiam ter. Ibsen teve ainda fibra para se tornar um caso raro de homem que envolvido em acusações injustas pôde ter parte de sua dor reparada ainda em vida. Não se amargurou, retomou atividades que sempre desempenhou e se reconstruiu – ou se negou a morrer, como disse em uma entrevista há poucos anos. Continuava com planos.

E aqui foi até onde eu consegui chegar sem citar um detalhe: Ibsen Pinheiro é meu pai.

Ativo e presente até o último dia de vida, Ibsen ganhou um aditivo extra na madrugada do dia 12 de abril de 2012. Foi quando a Lina o fez estrear em uma atividade inédita: a de avô. “Sempre achei que seria avô por merecimento, não por antiguidade”, brincava em outras de suas tiradas. Os nove meses de espera não foram suficientes para ele se acostumar com a ideia. Parecia espantado, falava pouco mas o orgulho era indisfarçável. Lina já nasceu com o desafio de descobrir este avô e fazer com que ele enfrentasse novas descobertas. A partir de então, Ibsen demonstrou um interesse e um envolvimento que eu nunca havia visto antes. A sabedoria da Lina amoleceu o velho rígido e exigiu dele novos ânimos, novos ensinamentos e uma sabedoria que sempre demonstrou. Nos últimos dias, ainda falava para nós de seus planos, seus palpites, suas ideias. Embora fraco, estava ativo, cheio de desejos e com um ânimo surpreendente para quem tinha 84 anos, sendo que nos últimos dois havia passado mais no hospital do que em casa.

Tinha muito ainda pela frente.

Não teve tempo.