Porto Alegre, quinta, 19 de setembro de 2024
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Artigo: Nova guerra fria entre EUA e China não terá vitorioso; por Maristela Basso*

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“Toda vez que a humanidade enfrentou grandes desafios foi na união, no consenso e no multilateralismo que encontrou seu melhor lugar de fala e de sobrevivência.”

As tensões aumentam entre Estados Unidos e China mesmo em plena pandemia da Covid 19 que, por si só, demandaria maior colaboração entre os países. É inegável que os Estados Unidos têm sido uma verdadeira força de divisão e não de cooperação no cenário internacional e, ademais, buscam, a cada dia, razões que possam alimentar a tentativa de criar uma nova guerra fria com a China. Se as iniciativas e abordagens do Presidente D. Trump prosperarem, passada a crise, não voltaremos ao normal, isto é, a um mundo em que todos ganhavam. Nesse novo tipo de guerra fria, muito provavelmente, pode não haver nenhum vitorioso.

Para os Estados Unidos de D. Trump, a China está se tornando uma ameaça global, evidenciada pelo confessado sonho chinês de reconquistar seu lugar de destaque na Ásia, e bloquear a ascensão americana na região. Tudo isso se justifica quando está em jogo o controle total do Partido Comunista. Mesmo que as tensões diminuam entre os dois gigantes, o mundo arcará com custos expressivos decorrentes da redução do crescimento – motivado pelo fomento das rivalidades entre os dois países.

A tentação de minar o crescimento e as resistências da China, como aconteceu com os Estados Unidos relativamente à URSS, no passado, recorrendo a antigas e novas estratégias, põe fim ao mundo unipolar, conquistado com enorme esforço da comunidade internacional no pós Segunda Guerra. Ademais, contribui para o surgimento de uma nova era de competições entre superpotências, na qual prevalecerá o desprezo pelo “bem global”, o enfraquecimento da diplomacia, e o fim da cooperação regional e, especialmente, do multilateralismo.

Em termos nominais, o comércio soviético-americano nos anos 80 era equivalente a US$ 2 bilhões por ano. Entre os Estados Unidos e a China, hoje, é de US$ 2 bilhões por dia. O que justifica o cerco americano aos chineses.

Em entrevista recente concedida à BBC, em 21 de junho de 2020, o economista e professor da Universidade de Columbia, Jeffrey Sachs[1], afirma que o mundo está caminhando para um período de “grande ruptura sem nenhuma liderança, após a pandemia”. Destaca, também, que “a divisão entre as superpotências exacerba os perigos que nos rondam e cria uma nova forma de guerra fria”.

Sachs chama atenção para a falta de liderança, tema fundamental em toda e qualquer discussão sobre o futuro, e que toma impulso quando as tensões entre os Estados Unidos e a China crescem em várias frentes e não apenas no comércio bilateral. Muitos são os interesses em jogo: semicondutores, submarinos, filmes de grande sucesso, exploração dos espaços aéreo e lunar e do ciberespaço, dentre outros.

Certamente, as relações ficam ainda mais tensas quando se adentra o âmbito das tecnologias cruciais, tais como a produção de chips e a tecnologia 5G. Setores que põem em risco tanto o comércio bilateral como a segurança nacional.

Seria insensato se D. Trump não recuasse e deixasse as coisas como estão, na medida em que as economias aliadas dos Estados Unidos, na Europa e mesmo na Ásia, dependem, em grande parte, do comércio com a China e não estão dispostas, a menos que forças persuasivas e claras as obriguem, a cortar seus vínculos com a China.

Não bastasse, D. Trump tem, frequentemente, editado medidas contra imigrantes que podem ser vitais para a inovação, ademais de contraproducentes. Também preocupa o fato de que o Presidente americano pretende mandar de volta, para seus países de origem, os estudantes estrangeiros que, na sua grande maioria, são chineses. Sabe-se também que não são poucas as sanções impostas pelos americanos a autoridades chinesas que ordenam ataques contra os movimentos expansionistas nos países vizinhos, como aconteceu, recentemente, contra os responsáveis pela repressão aos muçulmanos na Província de Xinjiang.

Aborrece, sobremaneira, os Estados Unidos o fato de que a China tem financiando ativamente projetos econômicos no Paquistão, Mianmar, Sri Lanka e Nepal, vizinhos da Índia, país aliado dos americanos e que também acalenta intenções de maior poder na região.

A indisposição de D. Trump com as empresas chinesas, em particular a gigante de telecomunicações Huawei, não diz respeito tão somente ao tema da espionagem e à segurança nacional, como também representa, indiscutivelmente, manobra política para ser reeleito, como observa o ex-conselheiro de Segurança Nacional John Bolton, em livro recente[2].

Perder o pódio na corrida do 5G implica derrota dura demais para o narcisismo de D. Trump.

A propósito das relações entre politica externa e psicanálise, o livro da psicóloga clinica, Mary Trump[3], publicado há pouco tempo nos EUA, revela que, para o homem que está hoje à frente da Casa Branca, “nada é suficiente e que ele exibe todas as características de um narcisista”.

Mary Trump é filha de Fred Trump Jr, irmão mais velho do Presidente, que morreu precocemente, em 1981, aos 42 anos, de complicações relacionadas ao consumo de álcool. No livro, que está sacudindo Washington, Mary Trump culpa o patriarca da Família, o avô Fred Trump, magnata imobiliário de Nova York, por grande parte da suposta disfunção familiar, na medida em que o avô interferia de forma nociva na capacidade dos filhos de desenvolverem e experimentarem todo o espectro das emoções humanas. Segundo ela, o avô tinha certeza quanto a ineptidão brutal de seu filho Donald e, tal desprezo, constante e não dissimulado, não tardou a liberar neste filho o monstro que crescia em seu interior. Dai porque Donald Trump seria incapaz de experimentar emoções, empatia e humanidade.

As lições que ficam da análise politica e psicológica dos líderes autoritários, narcisistas e perversos que conduzem as duas maiores potencias econômicas do mundo, nos sinalizam que devemos encontrar logo uma nova liderança global, como fizemos no passado, especialmente no pós Segunda Guerra.

Se, de um lado, Trump e Xi Jinping buscam reafirmar seus controles e projetar sua hegemonia mundo afora, eliminando normas, violando direitos internacionalmente reconhecidos, minando e enfraquecendo instituições e fóruns multilaterais, pondo em risco a paz e a segurança internacional conquistadas com o custo da morte de milhões de pessoas, civis e militares; de outro, contudo, nos invadem a esperança e a certeza de que não nos faltam recursos, inteligência e boa fé para buscar novos líderes que saibam trabalhar em conjunto, e cujas qualidades pessoais e profissionais possam nos ajudar a reduzir as tensões, afastar as controvérsias, aplacar e conter nossas feras internas e extrair de todos nós o que de melhor e mais sublime nos vincula em torno de uma só raça: a família humana.

Toda vez que a humanidade enfrentou grandes desafios, foi na união, no consenso e no multilateralismo que encontrou seu melhor lugar de fala e de sobrevivência.

 

*Maristela Basso é Professora de Direito Internacional e Comparado da USP (Faculdade de Direito do Largo São Francisco), Sócia responsável pelo núcleo de Direito Internacional e de Arbitragem do Nelson Wilians & Advogados Associado, é Assessora Especial da Secretaria de Relações Internacionais do Governo do Estado de São Paulo e colaboradora do portal Na Pauta Online.

 

 

 

** Artigo publicado originalmente no site: Na Pauta Online

Referências:

[1] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53127244

[2] “O Quarto onde Aconteceu” (The Room Where It Happened). Lançado em junho passado.

[3] “Too Much and Never Enough: How My Family Created the World’s Most Dangerous Man”. Lançado em 14 julho 2020.