Porto Alegre, quinta, 28 de novembro de 2024
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Artigo: Ao Davi, com carinho, por Soraia Hanna*

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Aqui o palestino Dawud no Muro das Lamentações

 

 

O ano era 1961.

A viagem partiu de Beirute e depois de 26 dias, entre portos europeus e o alto mar, o desembarque em Santos. Foi assim que meu pai, um palestino de Ramallah, o último de dez filhos, começou sua jornada na terra que aprendeu a amar. Ele se chamava Dawud — na tradução, Davi —, como o rei de Israel que nasceu em Belém, tal qual Jesus séculos adiante. Um nome recorrente entre judeus, cristãos e muçulmanos.

Ainda lembro quando sentava ao lado dele nos degraus da porta de nossa loja e ouvia suas histórias. Mais do que sobre o lugar sagrado, a Terra Santa, ele falava sobre as pessoas. Da mãe que servia lanche para os trabalhadores que faziam alguma obra no entorno. Das vezes que ele, um cristão, ia para a mesquita com seus amigos. E de dona Ruth, uma amiga judia que frequentava a casa da família na área antiga de Ramallah. A tradução de tudo o que lembro me remete a um conjunto de valores que busco nutrir e repassar aos meus filhos: tolerância, respeito e humanidade.

Portanto, analisar um processo tão complexo e doloroso como o que ocorre na Palestina, ao longo do tempo, é passível de erros e interpretações equivocadas. Por outro lado, é tão claro quanto necessário classificar o que ocorreu no último fim de semana: um ato terrorista contra inocentes, uma barbárie vil e criminosa – que deve ser repudiada sem poréns e contemporizações.

Diversos acordos foram desperdiçados ao longo do caminho, muito sangue foi derramado. Há um acúmulo de perdas e ressentimentos. E vemos áreas como Gaza com bloqueios internacionais, impondo escassez de água, luz e infraestrutura básica aos seus moradores. O direito de ir e vir estaciona nas dezenas de checkpoints que cercam o território ao longo de toda a Cisjordânia.

Para piorar, existe uma crise de liderança, com gestores ineptos que fomentam a intransigência e a unilateralidade. E há também a turma de aproveitadores, os mesmos que usam o conflito e suas miseráveis nuances como cortina de fumaça. A legítima causa – de ter um Estado soberano, ao lado de seus vizinhos – é encoberta por outros interesses da geopolítica internacional, da economia e do rearranjo de forças na região e no mundo.

Fica a pergunta: a quem servem a ampliação do conflito e o recrudescimento da violência na Palestina? Vivemos um retrocesso, em que interpretações se simplificam para gerar mais dicotomia e divisão. O desafio da moderação precisa ser perseguido. Não há justiça sem que olhemos para o futuro – que vem da esperança, do perdão, do amor que cura e que dá chance à paz.

Meu coração e minhas preces estão com as mães dos jovens brutalmente assassinados, com as crianças por baixo dos escombros dos prédios nas ruas de Gaza, com as milhares de vítimas judias, cristãs, muçulmanas, palestinas, sírias, libanesas que já partiram e as que virão. Oro para que os líderes internacionais somem esforços e tratem as feridas, que serão sempre cicatrizes expostas.

Rezo para que não se estigmatizem povos em uma espiral de preconceito, criando pretexto para outras atrocidades. Oro para que os criminosos sejam responsabilizados.

Rezo, enfim, para que haja um “novo despertar de tudo, uma nova história da humanidade”. Por sinal, esse é o título do livro escrito por dois Davids – Graeber e Wengrow —, lançado recentemente.

E é o mesmo que desejaria o meu Davi, que deixou de legado o respeito, a tolerância e o humanismo. A ti, meu pai, nosso esforço por construir um novo capítulo dessa história.

Jornalista, especialista em reputação e sócia-diretora da Critério – Resultado em Opinião Pública