Lula e eu tivemos um problema com um apartamento. Nos dois casos, uma cobertura. Nos dois casos, entramos na polêmica por tabela. O dele foi esmiuçado. O meu, lembrarei agora.
Há 30 anos saía a primeira manchete envolvendo o nome de Ibsen Pinheiro, meu pai, dentro da comissão da Câmara que investigava fraudes no Orçamento. Batizada com o pomposo nome de “Comissão Parlamentar Mista de Inquérito destinada a apurar fatos referentes às atividades de parlamentares na destinação de recursos do orçamento da União”, a CPI ganhou da imprensa uma alcunha menos longa e mais pejorativa: Anões do Orçamento. A nomenclatura fazia referência à baixa estatura de sete deputados – Genebaldo Correa, Cid Carvalho, Manoel Moreira, José Geraldo Ribeiro, Ronaldo Aragão e Geddel Vieira Lima sob a liderança de João Alves. Meu pai, com mais de 1m70cm e sem envolvimento com a comissão, não se encaixava em nenhum dos dois perfis.
A manchete era apressada. Saía no alto da edição dominical de O Globo, 7 de novembro, e fora vazada pela CPI no sábado, poucas horas antes do fechamento do jornal, o que determinou o tratamento açodado dado ao tema. Na capa, a manchete ganhou o mesmo tratamento apressado, sendo resumida em míseras 16 linhas espremidas em uma coluna entre uma foto de Madonna (que estava no Rio) e outra de Adriana Esteves (estrela de Renascer). Porém, o importante estava lá, no alto da página, um título que não deixava dúvidas “CPI: cheques comprometem Ibsen”.
Na parte interna, um texto de Jorge Bastos Moreno era mais virulento: Ibsen havia “recebido cheques do esquema de corrupção” e “pegamos um tubarão”, dizia um integrante da comissão. A fonte revelada por Moreno era o folclórico senador Ney Maranhão, ex-tropa de choque de Collor e, à época, já no PPR, depois dos naufrágios de seu líder e do PRN. A outra fonte, não revelada, seria conhecida uma década depois: o assessor Waldomiro Diniz, indicado pelo PT e próximo do senador Eduardo Suplicy e dos deputados Aloizio Mercadante e José Dirceu.
As primeiras acusações falavam de dois cheques de US$ 14 mil. Alimentadas por vazamentos e vitaminadas por boatos, as denúncias cresceriam e chegariam ao ápice com a capa de Veja. Às vésperas do Natal, Ibsen, em depoimento à CPI, teve que rebater a acusação do deputado Luis Salomão (PDT-RJ) de que Ibsen recebera uma cobertura de uma empreiteira.
O imóvel em questão era uma das três unidades de um prédio sem luxo algum no Bairro Petrópolis. Grande, é verdade, o apartamento havia sido escolhido em 1991 pela minha mãe (outra coincidência com Lula ao envolver as esposas dos dois acusados). Era lá que nós três vivíamos desde março de 1992. A negociação para a compra previa um pagamento em 36 parcelas, todas elas condizentes com a renda de um sujeito que era um advogado de relativo sucesso há três décadas, comentarista esportivo importante por duas e parlamentar há 15 anos.
De nada adiantou. A cobertura ganhou destaque na imprensa. Foi uma das atrações da reportagem da Veja com a capa “Até tu, Ibsen”, publicada uma semana depois da manchete de O Globo. Chegou ainda a ser avaliada em US$ 1 milhão, valor que nem todo o prédio mais o terreno deveriam alcançar. Enfim, ganhou uma dimensão imensa e cumpriu o papel decisivo que dela se esperava no processo. No dia 18 de maio de 1994, 193 dias depois da primeira denúncia, Ibsen foi cassado com 296 votos favoráveis, 139 contra e 24 abstenções.
Depois daquele dia, a cobertura nunca mais foi citada em nenhuma outra reportagem.
Agora, 30 anos depois:
A Veja perdeu a relevância. Chegou a ter um milhão de assinantes, hoje não tem 20% disso. Mario Sergio Conti, seu ex-diretor, lembrou em Notícias do Planalto como, nas CPIs, a revista e parlamentares petistas estiveram próximos e afinados. A Abril também se esvaziou. Vendeu 100% de suas ações para Fábio Carvalho, experiente em comprar ativos de empresas em dificuldades. Foi adquirida por um valor simbólico.
Aloizio Mercadante fracassou na busca pelos dois cargos de maior relevância que tentou: ser vice-presidente e governador de SP. Hoje está sem mandato.
Também sem mandato está José Dirceu, outrora o mais próximo assessor de Lula. Em 2005, teve o seu mandato cassado por quebra de decoro: 293 votos a favor , 192 contra.
Ney Maranhão não se reelegeu para nenhum outro cargo. Morreu em 2016 tragado pela própria irrelevância. Waldomiro voltaria às páginas, agora com foto e nome completo. Em 2004, a Época revelou que Carlinhos Cachoeira era extorquido por ele. Exonerado no mesmo dia, Waldomiro foi o pivô de um escândalo que atingiu em cheio ao governo Lula. Em 2012, foi condenado pela Justiça do Rio a 12 anos de reclusão além de multa por corrupção.
Laila, minha mãe, nunca se recuperaria das acusações e do processo. Entre triste e revoltada, dizia a meu pai durante o processo: “Mas Ibsen, isso é uma injustiça”. Meu pai, famoso pelas frases, rebatia sem perder o humor: “Ainda bem, não é? Tu querias que fosse verdade?”. Laila morreu, aos 78 anos, há uma década, em outubro de 2013.
Ibsen veria o STF mandar arquivar todas as acusações. Seria ainda capa da revista IstoÉ, em 2004, com uma reportagem com o jornalista Luis Costa Pinto que recuperava como havia sido a madrugada em que os chefes da Veja se decidiram pela capa.
Parcialmente reabilitado, Ibsen se elegeria vereador, em 2004, e deputado, em 2006.
Seguiria morando na cobertura até o dia 24 de janeiro de 2020, quando morreu aos 84 anos.
A cobertura, herdada por mim, levou quase três anos para ser vendida – e por um valor bem inferior aos US$ 1 milhão avaliados pela imprensa.
Consta que vem sendo reformada pelo casal com duas filhas que adquiriu o imóvel.
Desejo-lhes sorte