Estradas bloqueadas por dias, aeroporto fechado por tempo indeterminado, empresas que perderam tudo ou diversos bens essenciais, estabelecimentos sem operar praticamente um mês inteiro por alagamentos, falta de luz e água, seguradoras que serão acionadas em massa, uma infinidade de relações de relevância jurídica impactadas em um cenário completamente atípico, sem soluções legais prontas ou simples. A totalidade dos danos causados pelas enchentes no Rio Grande do Sul sequer pode ser mensurada ainda. Para os negócios, o momento é de avaliar os impactos financeiros e econômicos da tragédia em suas operações — o que exigirá um olhar atento a todas as possibilidades de reestruturação como alternativas ao fechamento das portas.
A legislação brasileira prevê ferramentas dentro do espectro da insolvência, algumas ainda pouco utilizadas, mas que podem ser grandes aliadas na superação de cenários de crise. Mediações antecedentes e incidentais aos processos de recuperação judicial estão entre elas.
Um contexto de crise empresarial é naturalmente complexo, propiciando a eclosão de interesses extremamente antagônicos. Por um lado, devedores com dificuldades para adimplir suas obrigações, tentando postergar pagamentos pelo maior prazo viável e repactuar seus compromissos. De outro, credores que desejam receber seus créditos rapidamente, com mínimo desconto possível. Esse conflito ganhará proporções ainda maiores nos próximos meses. Dificuldades de transporte para a entrega e abastecimento de produtos e matérias-primas agravam a situação de companhias que já eram devedoras, assim como os credores necessitarão de dinheiro em caixa para manter suas operações perante o delicado momento.
A tendência é de que o Judiciário seja mais acionado. No entanto, seria essa a maneira mais efetiva de resolver os impasses? A análise demanda cuidado. O acúmulo de demandas na esfera judicial torna processos mais lentos, além de favorecer, por vezes, a adoção de posturas mais litigantes pelas partes. Utilizando-se de ferramentas de mediação, os envolvidos prestigiam a chance de manter um diálogo mais próximo e profícuo, discutir os motivos da crise e caminhos viáveis para que acordos sejam construídos. Além disso, tanto devedores como credores conseguem avaliar melhor a situação para definir os próximos passos – algo crucial em um momento de tantas incertezas como agora.
Para empresas em crise, mas que ainda acreditam ser prematuro ingressar com medidas como a recuperação judicial, a mediação antecedente se mostra um caminho interessante. A partir desse instituto, o devedor pode requerer uma tutela de urgência cautelar para suspender execuções contra si durante o prazo de 60 dias (que deverá ser desafiado quanto à sua duração, dada à excepcionalidade atual), a fim de negociar com seus credores no ambiente da mediação. Trata-se de uma suspensão anterior ao pedido de recuperação judicial, que pode ou não ser concretizado posteriormente. Isso permite aos devedores fôlego na tentativa de reorganizar o passivo, sem a preocupação de iminentes medidas constritivas sobre seu patrimônio oriundas de execuções em andamento.
Além da suspensão das execuções, por meio do ajuizamento da tutela cautelar antecedente, as mediações podem ser instauradas para negociar com grupos de credores em que haja maior dificuldade na negociação direta, antes do surgimento de execuções judiciais. Para as empresas que já se encontram em recuperação judicial, existem mediações incidentais, que ocorrem paralelamente ao processo, a fim de facilitar as negociações. Há diversas possibilidades a serem exploradas na via extrajudicial, mas que dependem da avaliação do caso concreto.
Infelizmente, as mediações ainda são pouco utilizadas em processos de reestruturação empresarial, pois historicamente não foram estimuladas no sistema negocial falimentar brasileiro. De 1908 até 2005, a lei vetava a possibilidade de o devedor convocar os credores para renegociar as dívidas — sendo, inclusive, motivo para a decretação de falência dentro dos processos de concordata (de maneira simplificada, uma espécie de antiga recuperação judicial). Ou seja, durante muitos anos, as negociações extrajudiciais não foram consideradas nos processos de insolvência.
Entretanto, as necessidades precisam trazer consigo mudanças culturais para que sejam solucionadas de maneira mais rápida e efetiva. Advogados, juízes e empresários devem ter um olhar atento e receptivo à implementação de métodos autocompositivos, que podem evitar o ajuizamento de processos judiciais ou abreviar a duração dos já existentes. Sem dúvida, estamos vivendo uma crise sem precedentes que demandará, ao mesmo tempo, sensibilidade e racionalidade dos envolvidos. A mediação, mais do que nunca, é uma via que precisa estar no radar e ser difundida.