Porto Alegre, sábado, 19 de outubro de 2024
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Os Efeitos Tóxicos das enchentes no Sul do Brasil

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Em maio de 2024 o Rio Grande do Sul foi acometido pela maior catástrofe natural da sua história. Segundo a Defesa Civil, 476 municípios foram atingidos (cerca de 95% do Estado), que contabilizam pelo menos 2,3 milhões de pessoas atingidas. A FIERGS informou que dentre as 51 mil empresas existentes no Estado, 47 mil foram impactadas direta ou indiretamente. Os números são assustadores, e o trabalho de reconstrução, que já iniciou, será longo e desafiador.

Muitos impactos são evidentes no momento que acontecem. Entretanto, muitos dos efeitos não são vistos imediatamente e as consequências só serão sentidas a longo prazo. Os desafios estão só começando… E onde a toxicologia entra nesse processo?

A toxicologia pode ser entendida como a ciência que estuda os efeitos nocivos de agentes físicos, químicos ou biológicos aos seres vivos. Alguns efeitos, chamados de agudos, decorrem de uma exposição a altas doses destes agentes e produzem efeito em curto espaço de tempo. A água que invadiu as cidades, por exemplo, trouxe de imediato mais do que a destruição física por carregar tudo que tinha pela frente. Trouxe também, como efeito agudo, o aumento já evidente no número de casos de leptospirose e viroses intestinais. Quando o grande volume de água atingiu as cidades, misturou-se com o esgoto não tratado, espalhando pelos centros urbanos inúmeros patógenos. Soma-se a este fato, a alta aglomeração de pessoas em abrigos temporários, o que favorece a disseminação de doenças. Este é o tipo de contaminação que pode ser observada logo após o desastre, e os dados de atendimentos médicos mostram claramente que este efeito já está acontecendo.

Por outro lado, temos também efeitos crônicos, resultantes de exposições repetidas a uma dose mais baixa de agentes tóxicos. Nos meses ou anos após a tragédia, vamos precisar lidar com mais do que efeitos financeiros, de mobilidade e psicológicos. Alguns efeitos nocivos ao homem, fauna e flora nativos ainda não podem ser mensurados. Podemos falar aqui de algumas possíveis origens desses efeitos.

Esta mesma água que invadiu as casas também lavou indústrias dos mais variados tipos, carregando todo o tipo de contaminação. É importante lembrar que as indústrias são licenciadas pelos órgãos ambientais, os quais exigem tratamento de efluentes para reduzir sua toxicidade antes da liberação no ambiente. Estas licenças incluem o monitoramento dos efluentes, gases, lodos etc., para assegurar que os padrões estabelecidos estão sendo seguidos e garantindo o controle do que chega ao ambiente. Mas, durante esta tragédia, estes resíduos industriais foram arrastados pelas águas, sem passar por qualquer tratamento. Ainda mais, insumos e matérias primas que não poderiam ser lançados diretamente nos corpos d’água foram arrastados e perdidos na enchente.

As águas também subiram em zonas agrícolas, trazendo, possivelmente, contaminação química e biológica aos alimentos que estavam sendo produzidos. Agrotóxicos e fertilizantes que estavam presentes nas plantações, por exemplo, foram lavados e carregados pelas águas. No registro destes produtos junto às agências reguladoras (ANVISA, MAPA e IBAMA), são estabelecidas as condições de uso incluindo as quantidades e períodos corretos para sua aplicação. No entanto, o grande volume de água que lavou os solos e galpões de armazenamento em todo o Estado não levou em consideração quantidades e limites estabelecidos legalmente, carregando o que encontrou pela frente para os corpos d’água.

A possível contaminação se espalhou pelos centros urbanos, e agora se concentra no lodo que ficou acumulado em ruas e residências e que precisa ser retirado por pessoas que estarão expostas não sabemos nem a que tipo de contaminante. Somado a isso, teremos uma quantidade acima do normal de produtos de limpeza, agroquímicos e medicamentos sendo utilizados no processo geral de limpeza e tratamentos que também expõem as pessoas que os estão utilizando, e acabarão chegando ao ambiente natural que circunda as cidades.

A água, que aos poucos retorna ao seu curso natural, carrega as substâncias liberadas por acidente ou nos processos de limpeza, expondo a fauna e flora locais, que além de terem todo seu ambiente modificado, estarão expostas a concentrações mais altas de contaminantes químicos e biológicos. Estas alterações podem afetar o equilíbrio já frágil do ambiente local.

Estes são alguns pontos de atenção que precisarão ser abordados pós tragédia. Não sabemos o efeito de todos estes contaminantes nestes diferentes setores. Somente sabemos, que mais do que nunca, a toxicologia precisa ser aplicada para entendermos a dimensão desta tragédia e atuar de forma preventiva para proteger a saúde do homem e do ambiente.

Como gaúchos, estamos prontos para atuar na reconstrução do Estado. Já estamos atuando em abrigos, na distribuição de doações e organizando ações para arrecadar fundos para quem perdeu tudo.

Como toxicologistas, estamos preparados para aplicar todo o nosso profundo conhecimento científico e mais de 20 anos de experiência na avaliação do impacto desta tragédia na saúde do ambiente e das pessoas. Avaliações ambientais e ocupacionais, cálculos de limites baseados em saúde, estimativa de exposição, margem de segurança, avaliação de risco…. todo o nosso arsenal científico pode ser aplicado neste cenário.

Olhando para o futuro, podemos, por exemplo, aplicar a toxicologia no desenvolvimento de produtos com maior resistência e menor impacto ambiental, produtos de limpeza que, além de biodegradáveis tenham menor toxicidade, ou até mesmo a inclusão de antifúngicos e antibacterianos em materiais de construção e acabamento para aumentar sua resistência a eventos extremos sem comprometer sua segurança de uso. Podemos ainda ampliar análise de risco de medicamentos, produtos de higiene e cosméticos prevendo sua possível exposição no ambiente.

A ciência para avaliação de segurança de produtos evolui constantemente, e é extremamente importante que a segurança dos produtos seja avaliada à luz desse novo conhecimento.