Eu não exagero, ao escrever que ele é um dos grandes atores brasileiros. Em seu extenso currículo, esteve na pele de personagens criados por dramaturgos do quilate do russo Anton Tchekov, do norte-americano Edward Albee, do genial irlandês Samuel Becket, e tantos outros. Encarnou personalidades icônicas como o escritor Charles Bukowski, em “Memory Motel”. Faz algum tempo, aqui em São Paulo, eu o vi numa declaração de amor ao teatro e à literatura, em Gabinete de Curiosidades, do gaúcho Gilberto Schwartsmann, uma homenagem a grandes escritores e dramaturgos.
O palco é a sala de estar da casa de Zé Adão Barbosa, onde ele faz da arte, resistência. No mundo do efêmero, onde tudo se dissolve em pixels e distrações fugazes de aplicativos, ele mantém vivo o pacto sagrado com a plateia. O intérprete não pode errar e corrigir na edição. Não há um novo take a ser feito. O ofício é risco puro, entrega total, absolutamente vulnerável naquele instante de domínio absoluto do que o rodeia. A trajetória de sucesso como ator, diretor e formador de novos talentos, além das icônicas atuações no cinema e na televisão, atestam as minhas palavras. Autodidata, Zé Adão Barbosa é um dos gigantes do nosso teatro.
Inquieto e incansável, vai muito além da atuação. No palco é também diretor e produtor. Zé Adão já fez quadro de humor na tevê; no rádio, com sua voz, nos pegou pela mão e levou para passear pela capital gaúcha, em “Era Uma Vez em Porto Alegre”. Mestre, dá aulas para quem, como ele, sonhou atuar um dia e ainda ensina teoria e dinâmica em cursos de Comunicação, Expressão e Criatividade. São aulas direcionados a profissionais de outras áreas, com a finalidade de melhorar as performances dessas pessoas em suas atividades.
Esse homem marcante terá um 5 de março intenso. Às 21h, ele inaugura o Teatro Zé Adão Barbosa. É a realização de um sonho, e também a celebração dos 15 anos da Escola Casa de Teatro de Porto Alegre e dos 67 anos bem vividos, que ele completa com muitas histórias para contar. E como fazer tudo isso? Com um Baile de Carnaval, claro! Essa orgia sonora e visual, último bastião da “selvageria” institucionalizada no Brasil. Ah, se há algo que faz o coração do brasileiro bater mais forte, com certeza é a Folia do Momo. Prevejo um encontro daqueles que marcam época na cidade. Uma noite de brilhos e fantasias. O confete e a serpentina voando, enquanto as colombinas, pierrôs e melindrosas, darão um show de elegância e malemolência.
O Carnaval tem tudo a ver com Zé Adão, já que antes é um teatro de aparências, onde a máscara não esconde, revela. O rico que brinca de gari, a pobre que se veste de “ryca” – tudo encenação de um país que vive de ilusão. No final, os confetes se tornam poeira, as serpentinas se desfazem, e a manhã de cinzas e sol chega impiedosa, devolvendo cada um ao seu papel nessa tragicomédia tropical. Exatamente como acontece quando, encantados por uma peça teatral, de alma lavada, temos de nos deparar com a realidade da volta para casa.
Depois da festa, a realidade dura do trabalho irá se impor. O Teatro Zé Adão Barbosa funcionará com palcos móveis, num espaço de 720 metros quadrados. Localizado na Rua Álvaro Chaves, 462, bairro Floresta, irá acomodar até 200 espectadores, permitindo todas as possibilidades de montagens. A estrutura comporta espetáculos, exposições, shows e outros eventos. Como primeira atração confirmada, a montagem dirigida por Luciano Alabarse, com a junção de duas obras-primas: As Cadeiras, do romeno Eugène Ionesco, e Quem vem aí?, do norueguês Jon Fosse, ganhador do prêmio Nobel 2023. No elenco, Janaína Pellizzon, Zé Adão Barbosa e Pingo Alabarce. Cenografia de Alabarse e Ricardo Roman Ross. Iluminação de Mauricio Moura e João fraga. Produção de Jaques Machado e decoração de Daniel Jainechine. Bar Stravagante com Miriã Possani, Duda Cardoso e Estrela Dinn, do Studio Stravaganza. Discotecagem a cargo de Phedra DJ e Estrela Dinn.
Zé Adão não fez vestibular, profissionalizou-se muito cedo e nunca parou de fazer teatro. Ele sempre disse que adoraria ter cursado o DAD [Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS), onde assistia aulas por ser amigo de muitos dos professores, com quem viria a trabalhar mais tarde como Ivo Bender, Graça Nunes e Irene Brietzke.
Seus primeiros estudos em teatro foram no Círculo Operário da avenida Polônia. Nos anos 80, chegou a dar aulas de teatro em Alvorada e na Febem. “Experiência forte e necessária para entender o teatro como um riquíssimo instrumento de educação”, recorda. Zé Adão ministra aulas há várias décadas, formando novos atores. São 45 anos de carreira, 38 como professor. Desde 2010, dirige a Escola Casa de Teatro de Porto Alegre. Uma das raras escolas com “selo verde”, que garante o DRT do SATED, e a profissionalização. Oferece cursos para crianças, adolescentes e pessoas de todas as idades. Antes, foi um dos fundadores do Teatro Escola Porto Alegre (Tepa).
Ao longo de sua carreira multifacetada, foi dirigido por nomes importantes como Luciano Alabarse, Luís Paulo Vasconscellos, Adriane Motolla e Patricia Fagundes. Como diretor teatral, esteve à frente de projetos grandiosos, adaptados das obras de imortais como Shakespeare, Garcia Lorca, Tchekov e Jorge Amado. No cinema, entre papéis inesquecíveis, interpretou o cabo Cowboy, no curta “O Dia em Que Dorival Encarou a Guarda”, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart. Estudante de jornalismo, eu estava no Palácio dos Festivais, quando da exibição, e sai impactado com o que vi. Zé Adão trabalhou em produções de Werner Shünemann, Sérgio Silva e Tabajara Ruas. Esteve “na batina” de padre Lara, em O Tempo e o Vento, de Jayme Monjardim.
Na tevê, fez participações em documentários e minisséries (O Alienista, Luna Caliente e Programa de Índio). Esteve no elenco da novela Laços de Família, um sucesso global. E foi na estreia em novela das oito, o horário mais visto por brasileiros do Oiapoque ao Chuí, que ele sentiu-se desrespeitado pela forma como a produção o escalava para fazer suas participações. E decidiu sair! Com a firmeza de caráter que sempre demonstrou. literalmente. “chutou o pau da barraca e foi embora”. Para desespero do autor e produção, o personagem apareceu num capítulo e desapareceu no outro. O episódio fortaleceu a decisão de investir na formação de atores, em Porto Alegre. O fato foi amplamente divulgado e, obviamente, tal atitude teve um preço a ser pago: nunca mais participou da teledramaturgia da emissora.
História pessoal que rende livro, filme ou teatro
Nascido em uma família com sete irmãos, Zé Adão herdou o nome do pai. Natural de Porto Alegre, houve outras duas cidades que marcaram a sua vida. Ainda bebê, foi para Jaguarão e viveu na cidade até os 10 anos. Durante a infância, mudou-se para Camaquã, onde passou a adolescência. Aos 18 anos, retornou à Capital.
Os amigos sabem que ele “tem dois pais e duas mães”. Ceny Mattos Barbosa, a mãe biológica, teve peritonite na gravidez e chegou a receber extrema-unção. Em função disso, solicitou ao casal de cunhados que criasse o seu quinto filho, recém-nascido. Após a completa recuperação, o guri já havia se apegado “aos outros pais”. Em Jaguarão, no Teatro Esperança, do tempo em que ainda morava com a “família adotiva”, seu Dalmácio Batista Dibe e dona Ely Barbosa Dibe, Zé Adão teve a sua primeira “experiência” com o público. Aos cinco anos, interpretou um dos anjos numa montagem sacra do Dia das Mães.
O pai biológico, José Adão de Assis Barbosa, comunista de carteirinha, estudou no Colégio Rosário e prestou vestibular para Economia na Ufrgs. Teve um empreendimento comercial bem-sucedido que, com o tempo, entrou em declínio e fechou as portas. Foi um dos fundadores do PTB, depois do PDT. Era amigo pessoal de Leonel Brizola. Em 1965, a prisão de seu pai trouxe sofrimento e muitas perdas à família. Hoje, seu legado é reverenciado como nome de escola e praça em Camaquã. O plenário da Câmara Municipal, também leva o seu nome. Zé Adão é filiado ao PT, mas, ao contrário das pessoas que ingressaram na sigla nos tempos da oposição forte, ou da adesão ao poder exercido pelo partido na prefeitura de Porto Alegre, governo gaúcho ou nos anos Lula/Dilma, optou pela Estrela Vermelha no pior momento, quando dezenas de integrantes estavam sendo acusados de corrupção, muitos na cadeia e outros tantos respondendo a processos. Famosos do partido se calaram, ou fugiram dos holofotes. Na contramão, ele apresentou-se para defender suas ideias e ideais. Não importa se pai, ou filho, omissão não rima com o nome Zé Adão.
Além da política, o amor pela arte também é herança do pai biológico. Apreciador de literatura e música, brindava os filhos com livros e elepês. Sua mãe chegou a ser atriz na juventude, mas, a vida cotidiana a impediu de seguir adiante. Zé Adão, adolescente em Camaquã, participou de grupos teatrais e atuou em montagens infantis. Dentro do colégio, fez parte do grêmio no auge do movimento estudantil. Participou do grupo de teatro chamado “Veio d’Água”, onde montavam peças políticas como “Os Saltimbancos”, de Chico Buarque, até Plinio Marcos e Guarnieri. Zé Adão se mudou para Porto Alegre com o sonho de fazer carreira. O pai, apesar de apreciador das artes em geral, foi contrário à mudança (profissão incerta!). Na Capital, para sobreviver, o jovem ator trabalhou na extinta empresa JH Santos e no Badesul. A experiência como artista, e os aprendizados com o pai biológico, comerciante, foram decisivos em 1996, quando surgiu o Teatro Escola Porto Alegre (Tepa). Em 2010, após discordâncias sobre o futuro do empreendimento, saiu da sociedade e criou a Casa de Teatro de Porto Alegre, que comanda até hoje.
Fora dos palcos e holofotes, Zé Adão divide o lar com o videomaker Daniel Jainechine, junto com outras duas paixões, os pets Fred e Vilma. Quer saber mais sobre ele? Indico o livro escrito por Rodrigo Monteiro, lançado pelo “Porto Alegre em Cena”, onde estão contados trechos dessa rica existência, dentro e fora dos palcos. “Zé Adão Barbosa, movido à paixão”. O nome é um resumo perfeito para a figura que atua no teatro, como a vida exige, com muito mais do que talento: demanda disciplina, resistência e uma devoção radical ao coletivo. Afinal, quem ali não se entrega, não convence. E quem não convence, não merece a luz da ribalta. Zé Adão faz parte daquele pequeno grupo de atores que não busca os holofotes, mas ilumina a cena.
Serviço:
Inauguração do Teatro Zé Adão Barbosa.
Dia 5 de março, às 21h.
Local: Rua Álvaro Chaves. 462.
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