Porto Alegre, sexta, 20 de setembro de 2024
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Memorabilia: Areias Escaldantes – Inventário de uma Praia; por Márcio Pinheiro*

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Um cantinho, um violão, um amor, uma canção e da praia vê-se o Arpoador e o Morro Dois Irmãos. Que lindo! O que a jornalista, escritora, atriz e agitadora cultural Scarlet Moon de Chevalier fotografa – não com uma Rolleiflex mas com a instantaneidade de uma Polaroid – é a visão mais próxima do paraíso carioca. Um pedaço de terra que tinha apenas o oceano como limite e que, como uma ilha errante, podia ora se aproximar mais de Copacabana, ora do Leblon. Era o Posto 9, mas podia ser também o 9 e meio, o Sol Ipanema e pioneiramente, o Píer e as Dunas do Barato, lá onde Gal Costa reinava e seus súditos cabeludos faziam do local um território livre – para tudo. O relato desta viagem está em Areias Escaldantes – Inventário de uma Praia, crônica-relato de uma praia, de uma época e de dezenas de personagens.

Passam pela muvuca das areias de Scarlet um Evandro Mesquita cabeludo e de calcinhas Zazá, a ancestral da tanga de Fernando Gabeira, que marcaria o verão de 1979, o “verão da Abertura”. Desfilam também os papos psicanalíticos de Eduardo Mascarenhas, o charme da camaleoa Regina Casé, a poesia marginal de Chacal, Julio Barroso e dos irmãos Waly e Jorge Salomão, os surfistas dos pranchões que queriam que o havaí fosse aqui, o experimentalismo teatral do Asdrúbal Trouxe o Trombone, o provocativo topless de Patrícia Casé (a irmã menos famosa de Regina), o surrealismo das latas de maconha que vieram dar na praia (um presente de Iemanjá ou de Netuno, como acreditavam alguns), além de uma plêiade de hippies e desbundados, caretas e viajandões, notórios e desconhecidos.

Scarlet fala do assunto de cadeira (espreguiçadeira, óbvio), com a autoridade de quem foi uma das “bandeirantes”, que fizeram daquele local um point conhecido em todo o país e com uma das mais legítimas representantes dessa estranha tribo que fazia da praia casa e escritório e que tinha o exótico hábito de aplaudir o pôr do sol todo o final de tarde.

Scarlet Moon de Chevalier – garota da Zona Sul (ou da Zona Sol, como flagra o escritor Silviano Santiago na apresentação do livro), criada entre Ipanema e Copacabana, filha de Ramayana de Chevalier, professor e pioneiro em questões ecológicas e preservacionistas que a batizou com este nome em homenagem a um cacique pele-vermelha da tribo Sioux, e também irmã do antológico Roniquito, (na certidão, Ronald Russell Wallace de Chevalier, personagem e artífice de tantas histórias etílico-jornalísticas do final dos anos 60 com a turma do Pasquim). Atriz nos filmes vampirescos de Torquato Neto, colunista da Última Hora, musa inspiradora de Caetano Veloso e Rita Lee, Scarlet escreveu este livro aos 48 anos, 14 antes de morrer vítima de uma parada cardiorrespiratória, depois de lutar por 10 anos contra a síndrome de Shy-Drager.

Era para ser um livro menor e mais restrito, apenas vinculado ao legítimo Posto 9 e num formato idêntico ao já editado pela Relume-Dumará sobre alguns bairros e locais do Rio. Desacertos editoriais fizeram com que Scarlet saltasse fora mas como já estava inspirada pela ideia do relato resolveu fazer a sua versão personalíssima, revista e ampliada. É um livro de auto-ajuda, como ela confessa na introdução, mas dentro da linha ajuda-te-a-mim-mesmo. “Foi uma terapia a feitura desse livro. Descobri que algo que era importante para mim também representava muito para várias pessoas”. O inventário quase-memória de Scarlet também presta serviços de “futilidade-pública” como o esclarecimento de que a primeira mulher a desfilar grávida de biquíni não foi Leila Diniz e sim Vera Barreto Leite, mãe de Mariana de Moraes.

Areias Escaldantes é um livro saudosista sem ser nostálgico. “Não existe aquele papo de …naquele tempo é que era bom…”, diz Scarlet. Até porque eles eram felizes. E sabiam.

*Márcio Pinheiro, jornalista, escritor e publisher do AmaJazz