Porto Alegre, sábado, 04 de maio de 2024
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Maurício de Souza cheio de planos aos 85 anos. Vem aí a Turma da Mônica adulta, dois filmes e a conquista de novos países; por Felipe Vieira

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Quem me conhece sabe que sou fã de gibis de todos os estilos, mas quem não me conhece pode ter ficado surpreso com a minha emoção no final de uma entrevista que dividi com Eduardo Castro, no Especial Band News. Entrevistar pessoas que a gente admira é sempre complicado e fica mais complicado ainda pela distância da internet. Na entrevista frente a frente, entrevistado e entrevistador se estudam por um tempo e criam ou não uma relação de confiança e muitas vezes de cumplicidade. A pandemia tem impedido isso, ainda mais quando a “conversa”é com um senhor de 85 anos, com aparência bem mais jovem e um futuro cheio de planos para a Turma que criou e encanta há décadas milhões de pessoas no Brasil e mundo. A verdade é que meus olhos lacrimejaram e a voz embargou. Mesmo separado por quilômetros e quilômetros de distância eu tinha na “tela”, a visão de Maurício de Souza, alguém que lá atrás ajudou na minha alfabetização, a lembrança de sua obra me remete às melhores memórias da minha infância.

Mauricio Araújo de Sousa nasceu em Santa Isabel, interior paulista, dia 27 de outubro de 1935. Pai de dez filhos, ele retratou nas páginas de seus gibis os personagens moldados com base em sua prole. Há cinco anos lançou uma biografia e ali consta que cresceu num ambiente cercado pelas artes. Seu pai era barbeiro e poeta, compositor e pintor; a mãe, poetisa. Sua casa na infância era repleta de livros e ali ocorriam saraus, reuniões de artistas e rodas de chorinho. O que está fazendo hoje, afirma, já desejava aos sete anos de idade, quando começou a rabiscar e desenhou o Capitão Picolé. Hoje os quadrinhos de Mauricio de Sousa têm fama internacional, também adaptados para o cinema e a televisão, além dos jogos de videogame. São 85 anos desse brasileiro ilustre,  pai de dez filhos, mais de 400 personagens e mestre dos quadrinhos reconhecido mundialmente.

Setenta e oito anos depois do menino colocar o Capitão Picolé no papel, o homem que viu suas criações encantarem gerações segue cheio de planos. Em um ano atípico como 2020, seus personagens estiveram em peças publicitárias institucionais sobre a pandemia e os cuidados de higiene necessários.  Sim, o Cascão tomou banho e a Turma da Mônica ajudou a chamar a atenção de crianças e adultos para a higiene em tempos de Coronavírus. Apesar disso, para evitar polêmicas e patrulhas subjetivas, Maurício evitou colocar as personagens em roteiros com situações que remetam à Covid-19, ele não quer inserir a pandemia nos cenários do Limoeiro, bairro onde acontecem as histórias desde o princípio na década de 60. Conhecedor do assunto, ele sabe o que aconteceu com o cartunista norte-americano Al Capp, pseudônimo de Alfred Gerald Chaplim, que resistiu às pressões para levar o seu personagem Ferdinando, retratado hillbilly (caipira), às batalhas da Segunda Guerra na Europa. Ferdinando, o caipira que deu origem à Família Buscapé, não foi lutar contra Hitler porque o autor entendeu que os soldados o desejavam nos cenários da América e ele permaneceu em casa. Segundo Maurício de Souza, a decisão foi acertada e Ferdinando tornou-se ainda mais popular entre os soldados nas frentes de batalha, pois os remetia ao passado de paz.

A carreira de Maurício na imprensa começa em 1954, quando procurou emprego de desenhista e conseguiu uma vaga de repórter policial na Folha da Manhã. Por cinco anos escreveu reportagens e as ilustrava com desenhos. “Oficialmente”, começou a desenhar quadrinhos 1959 (o cão Bidu, seu primeiro personagem). As tiras de Bidu e seu dono, Franjinha, deram origem ao Cebolinha, surgindo em 1960. Mônica surgiu depois e tomou conta do terreno, tornou-se a “dona da rua” no bairro do Limoeiro.

A idade parece não afetar a sua capacidade de criação; ao contrário, após oito décadas e meia de vida, continua com novos projetos e planos que se estendem para além de sua própria existência. Maurício já é um imortal em vida. Não seria injusto dizer, pois ele é o nosso artista que mais se aproxima da genialidade de Walt Disney. Aliás, em Gramado está sendo construído o novo parque temático da Turma da Mônica. Ao responder sobre o segredo longevidade, o cartunista foi breve e irônico: “respirar”.

A pandemia, segundo ele, causou um efeito singular em seu estúdio de criação, onde emprega mais de 400 colaboradores. Anteriormente, todos reunidos no mesmo espaço físico de trabalho, Maurício diz que algumas vezes tinha dificuldades para reunir-se com estores, roteiristas ou desenhistas. E agora, todos em home office, ele consegue falar com qualquer um a todo instante. 

Houve um episódio parecido e poucos recordam, trata-se do personagem Nico Demo. Em tiras de humor negro, levava caos e destruição por onde passava, criação de Maurício de Souza com viés que hoje seria tachado politicamente incorreto. Era publicado em jornais de circulação diária e o autor foi pressionado a mudar a natureza da criação, torná-la menos polêmica. Pediram que alterasse a essência de Nico Demo e o seu criador resolveu aposentá-lo, embora tiras antigas tenham ressurgido recentemente em Portugal, Maurício garante que não voltará ao personagem.

Maurício, ao falar sobre os primórdios da Turma da Mônica, diz que logo percebeu o interesse das crianças nas personagens com histórias baseadas inicialmente em situações que ele próprio viveu na infância. Ao fazer isso, também descobriu que os leitores adultos se identificavam com aquilo, reconhecendo nos roteiros as suas reminiscências de criança. 

Sobre o futuro do estúdio como sede de criação, ainda não há certezas, mas ele espera que logo seja reaberto porque o espaço funciona também como memorial e recebe visitas agendadas, grupos de crianças e adultos fãs da Turma da Mônica. Não é raro encontrar e também eu sirvo como exemplo, pessoas na faixa dos quarenta ou cinquenta anos “alfabetizadas” com os gibis de Maurício. Antes de ingressar na escola, quando surgiu aquela curiosidade de criança para compreender a linguagem escrita, lembro de meus irmãos me ajudando nos primeiros passos do aprendizado com as revistas de sua autoria.

Mônica vai amadurecer

Já existe o projeto para criação da Turma da Mônica adulta. Serão temas mais maduros e atuais. Para tanto, Maurício de Souza pretende reunir um elenco de profissionais que incluem psicólogos, psiquiatras e até jornalistas para ajudar na contextualização dos temas e auxiliar aos roteiristas. Na década de 70, houve a personagem Tina,  “uma Mônica adolescente”. Mais recentemente a Turma da Mônica Jovem e agora vem aí a fase adulta da menina. O autor adianta que, inicialmente, não pretende abordar temas espinhosos como drogas e LGBTQ. Ele acredita que serão abordados com o tempo, conforme as pessoas forem se tornando menos refratárias e a sociedade brasileira for capaz de abordar esses temas sem paixões exacerbadas, a favor ou contra.

Ainda sobre polêmicas, certa vez houve com um personagem adaptado do futebol. Não Pelé, ou Ronaldinho Fenômeno, tampouco Ronaldinho Gaúcho (eram seus áureos tempos de futebolista e o personagem circulou em diversos países). E mesmo Neymar já foi retratado, embora como menos sucesso. A polêmica que ocorreu frustrou a continuação do personagem Dieguito, baseado em Maradona. A revista precisou ser “aposentada antes da hora”, em função da vida pessoal do craque argentino fora dos gramados. Perguntado sobre a perspectiva de novos personagens assim, respondeu que isso depende do próprio futebol brasileiro, caso surja um novo craque de relevância mundial. 

Maurício “invade” a Ásia e um novo filme a caminho

Maurício de Souza abriu uma empresa no Japão e já colhe bons resultados, logo estará entrando oficialmente em outros países asiáticos. Mônica Toy, por exemplo, é um desenho animado curto, sem falas, e pode ser assistido pelo YouTube. Não é um produto infantil, mas também é apreciado por crianças e a Mônica que surge é retratada como nos velhos tempos (se o leitor tem saudades da Mônica que dava porradas, é boa oportunidade para reencontrá-la numa versão muda em histórias breves). A versão ao estilo Toy é visualizada por milhões de pessoas em todo o planeta. Hoje, segundo Maurício, com certeza é o produto de maior aceitação mundial e vai estrear na tevê aberta japonesa (Fuji Television). “Nós queremos criar novos produtos com linguagem universal e que possam ser apreciados por adultos e crianças”, afirmou. “O sucesso foi acidental, eu não saberia criar algo tão grandioso de forma pensada”, revelou com humildade.

Laços, o filme, foi lançado em 2019 e a produção levou dois anos com a adaptação das personagens saídas das páginas dos quadrinhos. Atração à parte é o ator Rodrigo Santoro, como o Louco. “Ele quis fazer, praticamente se ofereceu”, revelou Maurício de Souza, adiantando que já existe o segundo filme, está pronto com os mesmos atores, ainda sem previsão de lançamento por causa da pandemia. Lições, o novo longa-metragem, vai mostrar a Turma da Mônica na escola. Do terceiro filme ele não quer revelar detalhes, mas deu a entender que o roteiro já está pronto. Maurício pretende seguir na produção cinematográfica e aposta também na televisão.

O encontro foi virtual, mas significativo para o garoto que lia gibis de vários autores, mas sabia que “aqueles” eram feitos por um brasileiro. Longa vida ao “jovem a mais tempo” Maurício de Souza,  que sua mente criativa e inquieta continue encantando crianças como eu, Theo, Laís e de várias gerações em diferentes continentes com suas histórias.