Porto Alegre, terça, 01 de outubro de 2024
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Ministro do STF diz que Governo Federal deve pagar o medicamento mesmo sem registro na Anvisa. Alexandre de Moraes palestrou sobre competências de Estados, Municípios e União em evento da Emagis

Detalhes Notícia
Segundo Alexandre de Moraes, "O SUS já é estruturado para definir o que cada um dos entes federativos têm como base na prestação da saúde pública".

 

A palestra do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes marcou a abertura do evento online realizado pela Escola da Magistratura (Emagis) do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) ontem (30/11) sobre o direito à saúde e a aplicação do Tema 793 do STF, que diz respeito à responsabilidade dos entes federados em ações solicitando prestação de saúde. O webinário fez parte da programação de um curso oferecido pela Escola a magistrados da 4ª Região, que ocorre entre os dias 29/11 e 06/12.

O webinário, que teve a coordenação científica do doutor honoris causa na Saúde da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (Emescam), desembargador federal João Pedro Gebran Neto, contou com a participação de uma centena de espectadores. Durante o evento, o diretor da Emagis, desembargador federal Márcio Antônio da Rocha, frisou que o assunto “é de difícil condução de forma que haja entendimento comum a todos” e, por isso, a importância das discussões.

Responsabilidade solidária

A discussão girou em torno da tese de repercussão geral do Tema 793, assim definida em 23 de maio do ano passado pelo plenário do STF: “Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”.

Em sua palestra, Alexandre de Moraes apontou que o tema da responsabilidade solidária é extremamente complexo. “Claramente, ao lermos o verbete do Tema 793, percebemos que o que se pretendeu afirmar é que há responsabilidade solidária, mas em partes. Há forte posição interna no STF de que se deve respeitar a distribuição de competências constitucionalmente definidas”, disse. Segundo ele, “se fosse fixada só a primeira parte do tema 793 – os entes da federação são solidariamente responsáveis nas demandas da área da saúde – todas as ações seriam ajuizadas na Justiça Federal, porque todos querem ingressar contra a União se o medicamento é muito caro”. O ministro apontou, no entanto, que a segunda parte do Tema da repercussão geral pretende respeitar a estrutura já definida pelo SUS.

Moraes disse que, no primeiro semestre deste ano, em virtude da pandemia, o STF apreciou mais de duas mil ações sobre de qual ente era a competência para determinação de isolamento, definições administrativas do que pode ficar aberto ou fechado, da permanência em praias, funcionamento de restaurantes e sistema de transporte público, entre outros. “O Supremo precisou se debruçar mais detalhadamente sobre a competência comum em relação à saúde pública e eventual solidariedade de forma mais ampla, não só sobre ações de medicamentos ou internações, mas todas as questões administrativas que envolvem o assunto”, comentou. Conforme ele, no momento da crise sanitária desencadeada pela pandemia, quando foi afirmado em plenário que a competência era comum, a conexão foi relacionada à segunda parte do Tema 793, que ressalta os critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, de repartição de competências.

Ele frisou, ainda, que a competência administrativa relacionada à saúde pública é de âmbito comum, mas prevalece a interpretação do princípio da predominância do interesse. “Não significa que um único ente federativo, a União, pode, de maneira imperial, ser responsável por todas as regras; também não significa que estados e municípios possam ser repúblicas autônomas dentro da federação”, pontuou. Moraes destacou que, muitas vezes, os entes brigam para ter competência sobre o assunto, mas em casos como os relacionados a medicamentos e internações, a luta é para não ter competência. “Em ambas as hipóteses, a interpretação deve ser a mesma: em que pese o Tema 793 inicie afirmando que a competência é comum, que há solidariedade, ela obrigatoriamente deve ser analisada sob o prisma da divisão de competências a partir do princípio da predominância de interesses, e o SUS já é estruturado para definir o que cada um dos entes federativos têm como base na prestação da saúde pública”, frisou.

O ministro também falou sobre os pedidos por medicamentos não registrados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Imaginem ações pleiteando o direito de aplicar vacina mesmo sem registro pela Anvisa? Hoje nem se discute isso, não há ação de conhecimento do STF com esse pleito. Isso deve valer para os demais, pois o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. Produtos sem registro na Anvisa só devem ser disponibilizados em casos excepcionais e, nesse sentido, as ações devem ser direcionadas à União”, disse. Isso porque, conforme ele, tanto Anvisa como Ministério da Saúde, responsáveis pela autorização de venda de medicamentos no Brasil e sua inclusão ou não na assistência farmacêutica pública, são órgãos do governo federal. “Mas, se houver substituto equivalente pelo SUS, há que ver quem tem a competência do fornecimento, se Prefeituras, Estados ou União, nem que se peça, posteriormente, eventual ressarcimento”, indicou.

Moraes ainda frisou que é impossível interpretar o Tema 793 sem conexão com o Tema 500, que ratifica que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais e que a ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial, a não ser em caso de demora irrazoável da Agência em apreciar o pedido (quando preenchidos três requisitos: a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior e a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil). O Tema 500 também declara que as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas contra a União.

Atuação do Ministério da Saúde

A primeira mesa de debates discutiu a gestão da saúde, incorporação e competências Administrativas, e foi coordenada pelo desembargador federal Luiz Fernando Wowk Penteado. A primeira palestrante foi a farmacêutica Deise Regina Sprada Pontarolli, servidora da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná. Ela explicou que, no Paraná, a compra de insumos para a saúde é organizada a partir de um consórcio entre o governo estadual e 398 municípios – com exceção de Curitiba – e essa estratégia reduz os custos e proporciona ganho em escala. O consórcio adquire, anualmente, 166 apresentações de medicamentos, com distribuição descentralizada para as regionais e diretamente a alguns municípios.

A fala de Pontarolli foi sucedida pela apresentação de Vânia Canuto, diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde do Ministério da Saúde. Ela abordou o funcionamento da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e enfatizou que um dos entraves na circulação de medicamentos no Brasil é o fato de que o registro de novos insumos na Anvisa é iniciado pela empresa produtora, e não pelo governo federal ou órgãos de regulação. Canuto falou, ainda, que uma das tarefas do Conitec é o monitoramento do horizonte tecnológico, para a sinalização de medicamentos novos e emergentes, antecipação de análises e redução de custos e tempo de registro. “É preciso sempre reavaliar os resultado dos tratamentos, para evitar ações judiciais por falta de eficácia”, lembrou. Sobre os custos de medicamentos, Canuto falou sobre um problema que afeta, especialmente, países subdesenvolvidos, como o Brasil. “Como é que um medicamento pode custar R$ 12 milhões? Não se sabe quanto o Reino Unido ou a França pagam, porque há acordos confidenciais. Se a empresa diz que custa R$ 12 milhes, é isso. Ninguém audita as empresas e se chega a valores cada vez mais elevados”, criticou.

A mesa foi concluída com a participação de Sandra de Castro Barros, diretora do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. Ela lembrou que o Brasil tem o maior sistema de saúde pública em países com mais de 100 milhões de habitantes, o que também proporciona grandes desafios. Castro Barros enfatizou que as pactuações e atos para que a assistência farmacêutica seja plena precisam prever a universalidade, a integralidade, a equidade, o direito à informação e a participação social. A diretora afirmou que, em 2019, foram gastos R$ 1,3 bilhões em medicamentos disponibilizados a partir de sentenças judiciais pelo Ministério da Saúde, um aumento de 1.000% em relação a 2010. “(O custo com) a judicialização cresceu dez vezes mais do que o orçamento. Quem dera todos pudessem ter acesso a tudo, mas o cobertor é curto. Temos anseios por novas tecnologias, por resultados mais céleres, mas é importante ver a relação entre custo e benefício, utilizar melhor e com mais eficiência os recursos”, ela reforçou.

Aplicação processual do Tema 793

Sob a coordenação do desembargador federal João Batista Pinto Silveira, a segunda mesa discutiu a aplicação da tese do STF nos processos. O desembargador federal Paulo Afonso Brum Vaz, integrante da Turma Regional Suplementar de Santa Catarina, foi o primeiro palestrante. “O desafio é tentar superar a dispersão e as incertezas, algumas aparentes, sobre o sentido e o alcance da ratio decidendi do Tema 793″, disse. Para ele, em ações de medicamentos contra a União, as respectivas responsabilidades acessórias, como a dispensação dos medicamentos, poderão ser direcionadas aos Estados e Municípios. “Há a hipótese de litisconsorte passivo necessário quanto à União, quando figurarem na ação também os outros entes legitimados”, pontuou.

A juíza da 3ª Vara Federal de Curitiba, Ana Carolina Morozowski, continuou os debates, ressaltando que os Estados gastam, proporcionalmente, muito mais do que a União em judicialização. “A judicialização traz o fenômeno que é o ‘tirar de um para dar a outro’. Os medicamentos judicializados estavam, no Paraná, tirando o espaço daqueles contra o HIV. Às vezes, se faz uma licitação para um único medicamento, que pode ser um fitoterápico ou multivitamínico, por exemplo”, ilustrou. A juíza federal falou sobre a tese da “vítima identificada”, em que há um impulso em dar preferência para quem se conhece em detrimento da coletividade. “É preciso ter em mente que, se concedemos um medicamento de R$ 12 milhões, alguém vai ser prejudicado. A decisão pode não fazer só o bem, pode também fazer mal para alguém”, argumentou a magistrada.

O juiz da 5ª Vara Federal de Porto Alegre, Gabriel Menna Barreto Von Gehlen, apresentou casos práticos de ações em trâmite, como uma solicitação de medicamento previsto na política pública, mas para tratamento de doença diversa da que o paciente apresentava. O remédio em questão, a ciclosporina, é de financiamento estadual, mas a organização do Rename é de responsabilidade federal. “É prático ordenar que o Estado cumpra a ordem, mas estaríamos desonerando a União em seus deveres. Nesse caso, entendo que o ônus da compra deve ser da União”, disse. Segundo ele, em 2019, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul gastou R$ 560 milhões com judicialização, um terço do valor empenhado pelo Ministério da Saúde para todo o país.

Direito material

A última mesa, coordenada pelo desembargador federal Sebastião Ogê Muniz, abordou a repercussão do Tema 793 no direito material. A primeira a falar foi a desembargadora federal Taís Schilling Ferraz, integrante da 6ª Turma do TRF4. Ela apontou que, se o medicamento em discussão não está na política pública, é certo que a União tenha de ser a ré no processo e, nesse sentido, a atribuição é da Justiça Federal. “A decisão, embora se tratasse de medicamentos, vai poder ser aplicada também nos casos de procedimentos ou insumos ainda não admitidos pelo SUS”, indicou.

A juíza da 15ª Vara Federal de Curitiba, Luciana da Veiga Oliveira, assinalou a existência de uma zona de incertezas em relação ao tema: quando o medicamento já foi aprovado pela Anvisa, mas ainda não foi decidida a classificação no Rename de quem é a responsabilidade de pagamento. “O SUS tem 180 dias para tornar disponível nas farmácias, é nesse momento que haverá a pactuação. O que ocorre se Estados e Municípios não aceitarem a pactuação é que a União é a total responsável. Entendo que, se há recusa de financiamento depois de o medicamento já estar integrado à política pública, a responsabilidade é da União”, ela disse.

O último palestrante do evento foi o juiz da 3ª Vara Federal de Londrina, Bruno Henrique Silva Santos, que abordou de forma mais abrangente como o Tema 793 pode ser aplicado a insumos e procedimentos, cujo financiamento, ao contrário dos medicamentos, ocorre regionalmente, em Comissões Tripartites Intergestores. Ele entende que, no caso de tecnologias já padronizadas, é necessário que o magistrado consulte os gestores do SUS local sobre a quem cabe o financiamento do serviço. No entanto, quando o pedido não está previsto pelo SUS, deve ser consultado o item similar na Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (Renases). Caso a tecnologia não possua congênere, argumenta Silva Santos, o magistrado poderia determinar de quem é a responsabilidade do financiamento a partir de uma correlação dos níveis previstos no Renases – atenção básica, urgência e emergência, atenção psicossocial, média ou alta complexidade, ou vigilância em saúde.