O cantor e fadista Carlos do Carmo morreu na manhã desta sexta-feira, no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde tinha dado entrada na véspera com um aneurisma. Tinha 81 anos. A notícia, dada pelo jornal Expresso, foi depois confirmada pela editora do intérprete, a Universal, que explicou que ele “foi vítima de um pós-operatório a um aneurisma da aorta abdominal”.
“O fadista deixa um enorme legado que marcou profundamente o Fado. Senhor de um dom inigualável, Carlos do Carmo deu vida às palavras como ninguém. Muitas vezes visionário, nunca abdicou de levar o Fado para outras dimensões, de lhe introduzir novos instrumentos, de evangelizar novos poetas, de manter o nível”, diz ainda o comunicado da editora, anunciando que o intérprete preparava-se para editar o um novo álbum de estúdio, intitulado E Ainda….
Carlos do Carmo tinha-se despedido dos palcos a 19 de Novembro de 2019, com um concerto no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no mesmo dia em foi condecorado pelo primeiro-ministro António Costa com a Medalha de Mérito Cultural pelo seu “inestimável contributo” para a música portuguesa.
Essa despedida dos palcos não foi, contudo, uma despedida da carreira, já que Carlos do Carmo continuou o seu trabalho, tendo pronto o novo disco já referido, cujo lançamento esteve agendado para o passado mês de Novembro, e que a Universal anunciou, esta sexta-feira, que irá ser editado proximamente. Em E Ainda…, Carlos do Carmo canta Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner Andresen, Hélia Correia, Júlio Pomar e Jorge Palma, nomes que junta aos inúmeros poetas do seu repertório.
Na altura da apresentação dos concertos nos Coliseus, o fadista disse à agência Lusa: “É altura de acalmar”, lembrando que já contava 57 anos de carreira. “É só uma saída de cena, dos palcos”, sublinhou então o intérprete de Por morrer uma andorinha. Prestes da completar 80 anos, Carlos do Carmo explicava também no final de Outubro desse ano, em entrevista ao PÚBLICO, que os concertos que ia dar nos Coliseus do Porto e de Lisboa não significavam um adeus ao fado, tão só a despedida dos grandes palcos, e que continuaria a cantar e a gravar.
E Ainda… será já, pois, um disco póstumo, mas a celebrar uma carreira de mais de meio século em palco e em cena, aplaudida em Portugal e um pouco por todo o mundo. Em 2014, viu-se distinguido com um Grammy Latino de carreira, cantou no Olympia e no Auditório Nacional, em Paris, no Le Carré, em Amesterdão, no Place des Arts, em Montreal, no Canadá, nas óperas de Frankfurt e de Wiesbaden, na Alemanha, no “Canecão”, no Rio de Janeiro, e no Memorial da América Latina, em S. Paulo, no Brasil, no Royal Albert Hall, em Londres, entre tantas outras salas.
Filho de fadista…
Nascido em Lisboa, em 21 de Dezembro de 1939, Carlos do Carmo era filho da fadista Lucília do Carmo (1919-1998) e do livreiro Alfredo Almeida, proprietários da casa de fados O Faia, onde começou a cantar, até iniciar a carreira artística em 1964.
A Enciclopédia da Música Portuguesa no Século XX aponta Carlos do Carmo como “um dos maiores referenciais” no fado. “As transformações que Carlos do Carmo operou [no fado] foram influenciadas pelos seus gostos musicais que incluíram referências externas” como a bossa nova, do Brasil, e os estilos próprios de cantores como Frank Sinatra (1915-1998), Jacques Brel (1929-1978) e Elis Regina (1945-1982), segundo a enciclopédia da música portuguesa.
A enciclopédia destaca que, desde a década de 1970, Carlos do Carmo “acentuou as inovações musicais”, tornando-o “no representante máximo do chamado ‘fado novo’”, com trabalhos como o álbum Um Homem na Cidade (1977).
Foi um dos principais e mais determinantes embaixadores da Candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade, e desempenhou um “papel fundamental na divulgação dos maiores poetas portugueses”, como destacou o júri do Prémio Vasco Graça Moura de Cidadania Cultural.
Na sua carreira, o fadista celebrizou canções como Bairro Alto, Fado Penélope, Os Putos, Um Homem na Cidade, Uma Flor de Verde Pinho, Canoas do Tejo, Lisboa, Menina e Moça.
“Um grande profissional”
Carlos do Carmo foi “um grande profissional”, disse à Lusa o guitarrista António Chaínho, que o acompanhou durante 25 anos, até 1991. O músico salientou “o bom gosto musical” do fadista e “o cuidado com a escolha de repertório”. E salientou o gosto que ele tinha pelo cantor norte-americano Frank Sinatra, “cuja atitude em palco seguia de certa forma”.
Dizendo que tinha falado recentemente com Carlos do Carmo, Chaínho disse-se com “o coração todo partido”, perante o seu desaparecimento inesperado. O guitarrista acompanhou Carlos do Carmo até 1991, tendo participado nas gravações dos seus álbuns Homem na Cidade e Homem no País e em várias digressões internacionais. E recordou o espectáculo em Bordéus, França, onde o cantor teve um acidente e partiu “várias costelas”. “Foi mesmo a terminar o espectáculo, estava a cantar Lisboa, Menina e Moça, e, mesmo depois da queda, fez questão de fechar o espectáculo”.
Rui Vieira Nery salientou, também em declaração à Lusa, que Carlos do Carmo “foi a maior força renovadora do fado, depois de Amália Rodrigues [1920-1999]”. Autor de Para uma História do Fado, o musicólogo considerou que “quase todos os momentos de renovação do fado, nos últimos 50 anos, tiveram alguma ligação com Carlos do Carmo”. E referiu “os grandes poetas e compositores de outras áreas que Carlos do Carmo trouxe para o fado” e “as pontes que estabeleceu entre o fado e outros géneros musicais”.
Rui Vieira Nery, que era amigo do fadista, sublinhou o seu “apoio e encorajamento aos novos fadistas”. O musicólogo e Carlos do Carmo colaboraram na série documental Trovas Antigas, Saudade Louca, exibida em 2010, na RTP. Vieira Nery realçou ainda o “apoio de Carlos do Carmo a iniciativas que promoveram o fado” e o seu contributo “para a reconciliação dos portugueses com o fado”, citando, entre outras, o Museu do Fado e a candidatura do fado a património imaterial da Humanidade, que se concretizou em 2011.
Nuno Júdice, um dos poetas cantados por Carlos do Carmo – foi autor de Fado à Noite e Lisboa Oxalá, temas incluídos no álbum À Noite, editado em 2008 –, destacou o “respeito absoluto” que o fadista tinha “pela poesia, pela língua e pela tradição, o Fado”. “Ele foi buscar essas formas tradicionais do fado português e foi capaz de as renovar e actualizar de uma maneira perfeita”, afirmou o escritor à Lusa.
Nuno Júdice recordou também um “amigo”, cujas “conversas eram sempre fascinantes”. “Tinha atrás dele toda a história do Fado, mas ao mesmo tempo era um homem que olhava para o presente e muito atento à realidade do país e do mundo”, afirmou.
Enquanto artista, cantor, o que fascinava o poeta “era a forma como [Carlos do Carmo] dizia o poema”. “Ele próprio, quando me pediu para escrever dois fados para ele, me disse para ter muita atenção à palavra, porque a voz dele respeitava integralmente cada sílaba. Nós ouvimos, quando ele canta, toda a frase poética que está na canção”, disse o poeta e ensaísta.
Foi com Carlos do Carmo que Nuno Júdice aprendeu “a escrever poesia para ser cantada”: “Porque ele me dizia para estar muito atento, não apenas à melodia da própria língua, mas à métrica, à forma como os acentos têm de estar localizados para que não haja nenhuma traição quando [se] está a cantar”.
Os dois poemas que Nuno Júdice escreveu para Carlos do Carmo, que deram origem a Fado à Noite e Lisboa Oxalá, “foram trabalhados” com o fadista. “E não houve muito a alterar, mas percebi que ele me estava de certo modo a ensinar, mas de uma forma muito discreta, sem estar a impor de maneira nenhuma a sua forma. Aquilo que ele queria era que eu estivesse à vontade para fazer essas pequenas alterações, que foram coisas mínimas, mas que faziam com que a métrica se adaptasse perfeitamente àquilo que a voz dele pretendia”, recordou.
“Identificação com o povo português”
Do lado das reacções institucionais, o Presidente da República manifestou um sentimento “de perda” perante a notícia da morte do fadista, que recordou como “uma grande figura da cultura” e também como “um grande homem”.
Em declarações à RTP, Marcelo Rebelo de Sousa disse ter recebido esta notícia com uma reacção idêntica “à de todos os portugueses”. “Uma reacção de perda por aquilo que Carlos do Carmo fez pela consagração do fado como Património Imaterial da Humanidade, mas também pelo que deu como voz de Portugal cá dentro e lá fora junto das comunidades portuguesas, prestigiando não apenas o fado, mas a nossa cultura”, destacou.
O Chefe de Estado realçou ainda que Carlos do Carmo foi “uma voz” na luta pela liberdade nos tempos da ditadura e na transição para a democracia. “Por detrás de uma grande figura da cultura, estava um grande homem, com uma grande riqueza pessoal, uma sensibilidade e uma intuição e identificação com o povo português, que o povo português não esquece”, acrescentou.
Marcelo considerou ainda que a morte de Carlos do Carmo, no primeiro dia de 2021, “um dia que devia ser de esperança”, não pode ser encarada “com desesperança”, mas como uma homenagem a alguém que “nunca perdia a esperança”.
Também o primeiro-ministro evocou com saudade Carlos do Carmo, recordando-o como “notável fadista” e “um grande amigo”. “Fazendo eco das palavras que cantou no Fado da Saudade: ‘Mas com um nó de saudade, na garganta/ Escuto um fado que se entoa, à despedida’ de um grande amigo”, escreveu António Costa numa publicação na rede social Twitter. Aí sublinhou que Carlos do Carmo “não era só um notável fadista, que o público, a crítica e um Grammy consagraram”. “Um dos seus maiores contributos para a cultura portuguesa foi a forma como militantemente renovou o fado e o preparou para o futuro”, evocou.
Com um percurso político ligado ao PCP, Carlos do Carmo foi mandatário de António Costa na campanha de 2009 para a Câmara Municipal de Lisboa e participou igualmente num almoço de campanha do PS nas legislativas de 2015, em que recusou definir-se como simpatizante socialista, dizendo antes ser um apoiante do líder do PS.
A ministra da Cultura, Graça Fonseca, reagindo também no Twitter ao seu desaparecimento, recordou Carlos do Carmo como “uma das maiores referências da interpretação do fado, que mostrou sempre uma especial preocupação com a divulgação desta forma de música”.
Já o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, manifestando o seu pesar pela morte de Carlos do Carmo, recordou-o como “um nome ímpar” do fado e como “figura relevante” na luta pela liberdade.
Na sua mensagem de pesar, a segunda figura do Estado recordou também um “amigo de mais de 60 anos” e a personalidade marcante de Carlos do Carmo, “que não deixava indiferente quem com ele convivia”. “Carlos do Carmo é, inquestionavelmente, um nome ímpar do fado e figura incontornável do meio artístico e da canção portuguesa, numa carreira de décadas que perdurará na memória de todos nós”, refere. ( Sérgio C. Andrade/Publico com Agência Lusa)