Porto Alegre, sábado, 18 de maio de 2024
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Thomas Caleffi, o “nerd” gaúcho por trás do jogo FIFA 22

Detalhes Notícia
Thomas atua à frente de uma grande equipe de jovens talentos na EA. Foto: Arquivo pessoal

 

 

Mesmo quem não conhece videogames, com certeza já ouviu falar do jogo FIFA da EA (Electronic Arts), que é um dos simuladores de futebol mais bem-sucedidos comercialmente, cuja nova versão foi lançada faz alguns dias, em 1º de outubro. Por trás desse sucesso, quase ninguém sabe, está o gaúcho Thomas Caleffi Scaletscky.

Thomas é filho da médica mastologista Maira Caleffi, recentemente indicada a um prêmio internacional de combate ao câncer, ao lado do presidente norte-americano, Joe Biden, graças ao trabalho voluntário que exerce à frente Instituto da Mama do Rio Grande do Sul (Imama). Eu conversei com esse prodígio, torcedor do Grêmio residente no Canadá. Ele está inserido faz alguns anos no mercado milionário dos jogos de videogame, onde atua à frente de uma grande equipe de jovens talentos do mundo inteiro, responsáveis por muitas das horas que outros jovens e também adultos dedicam ao entretenimento diário.

A versão mais recente do FIFA, por exemplo, vem com novas tecnologias como o Hypermotion, que viabilizou a criação de animações mais fidedignas, bem mais verossímeis na semelhança com os jogadores reais. O jogo foi lançado recentemente, dia 1º de outubro, com melhorias na mecânica dos goleiros e opções personalizáveis, disponível para PlayStation 5 (PS5), PlayStation 4 (PS4), Xbox One, Xbox Series X/S, Nintendo Switch e PC.

As novidades para 2022 marcam também uma nova mecânica, relacionada à tecnologia HyperMotion nos consoles de nova geração, permitindo aos jogadores aplicarem diferentes estilos de jogo em cada metade do campo. Da mesma forma que ocorreu com a versão 21, o FIFA 22 terá times brasileiros com jogadores genéricos (nomes e aparências que não correspondem à realidade). Por conta da Lei Pelé, direitos de imagem dos jogadores que atuam no Brasil são protegidos e, para poder ter um jogador “real” nos jogos é preciso negociar a cessão dos direitos de imagem. Nos últimos anos, houve uma grande leva de ações pedindo reparação por parte dos jogadores.

 

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos com o jovem Tom Caleffi:

FV: Você se identifica, e realmente és, meio italiano e meio russo, nascido no Brasil e residente no Canadá. Tu és natural de Porto Alegre? Qual a tua idade hoje?

TC: Nasci e morei quase a vida inteira em Porto Alegre, até 2014, quando mudei para Vancouver. Estou com 33 anos. E sim, me identifico como brasileiro com origens italianas e russas. Minha família sempre enfatizou, e orgulhou-se de nossas origens, algo que passou para mim e prezo desde de criança. Acho importante enfatizar os pontos únicos de cada um, ajuda a entender que a pessoa não é só x ou y, mas um amálgama. Então, quando falo que sou meio italiano, meio russo, brasileiro e que mora no Canadá, já desperta interesse das pessoas e não me põe numa caixa ou estereótipo.

FV: Faz quase uma década que tu trabalhas na indústria mundial dos games e, segundo tu mesmo, Vancouver é um passo em tua agenda de dominação global. Gostei do enunciado bem-humorado. Tua formação é eclética, pelo que pude apurar. Tu és egresso da Unisinos, onde chegaste a flertar com o jornalismo. Qual é a tua formação universitária primeira? Tu és graduado em tecnologia com especialização em games pela Unisinos?

TC: Faz bastante tempo mesmo, trabalho com games desde que me formei na Unisinos em 2008/2009, parece uma “lifetime ago”, especialmente com o que ocorreu nesses últimos dois anos. Sempre fui bem-humorado, preciso ser para lidar com todos os problemas e tudo o que acontece no dia-a-dia, talvez seja meu jeitinho brasileiro, já que aqui, muita gente é mais séria em público. O processo de mudar de país, batalhar visto de trabalho, esperar meses por uma resposta, e antes disso buscar empregos e ouvir pessoas te menosprezando, exige paciência de santo, como diria minha avó, além de bom-humor para levar adiante.

Sempre gostei de escrever, e desde pequeno a minha matéria favorita na escola era matemática, eram as ciências exatas. Então, quando escrevia texto na aula de português eu estava naquilo que gostava também. E por isso a minha trajetória teve computação, games e jornalismo, que fazia sentido paro meu cérebro de então, aos 16 anos quando ingressei na faculdade.

Minha formação mesmo é em Tecnologia Digital de Games, na Unisinos (não lembro, se era o nome exato do curso). Maioria das aulas eram de Ciências da Computação, com um pouco de games a cada semestre.

 

FV: Saíste do Brasil, direto para o British Columbia Institute of Technology? Estudaste cinema também, com especialização em roteiros para games? Fala um pouco sobre essas experiências?

 TC: Quando saí do Brasil, meu objetivo era trabalhar na área de games aqui em Vancouver. Não é fácil. Eles não levam a sério, se não tens experiência em grandes estúdios, ou jogos importantes, nem bastante contatos na indústria. Mesmo com a experiência que tinha no Brasil, não seria suficiente e, provavelmente, acabaria voltando, como vi acontecer com várias pessoas. Então, bolei o plano para estudar um ano na Vancouver Film School, no programa de Game Design deles, onde fui em busca também de contatos e “pontos” para poder conseguir uma permissão de trabalho e visto de residência permanente (assim que acabasse a escola). O processo estava difícil e, depois de passar pela Vancouver Film School, acabei estudando na BCIT (British Columbia Institute of Technology), curso de doze meses com formação em liderança (leadership), porque a BCIT me deixava trabalhar meio turno e por ali eu iria receber licença de trabalho de dois, após a conclusão do curso. Ao mesmo tempo em que estava na BCIT, batalhei para obter a residência permanente. Meu plano era atacar por todos lados, algo haveria de funcionar (risos).

FV: Como foi o teu ingresso oficial na indústria dos jogos, o primeiro emprego?

 TC:  De 2005 a 2007, estagiei num laboratório de pesquisas educacionais na UFRGS, onde fiz games para crianças, ou treinamento de aulas da universidade. Foi muito legal, mas, games não eram o foco principal, era mais educação, então fazia-se de tudo, vídeos, animações, peças interativas e até aulas de programas (dei aula de Flash, Word, Excel e PowerPoint).

Café, paixão de Thomas.

A experiência veio depois de formado na Unisinos. Alguns conhecidos que se formaram no mesmo período, já estavam começando um startup, inserida na incubadora da Unisinos, no centro tecnológico que então estava crescendo. Eles precisavam de um sócio que gostasse de game design, produção, e que também ajudasse na parte de negócios. Ao todo, foram quatro anos de empresa, Audax Dreams Entertainment. Houve um ponto em que tínhamos mais de dez pessoas trabalhando conosco.

Trabalhamos para várias empresas como Honda, Chevrolet, agências de propaganda e até fizemos um trabalho para a Marvel. Trabalhamos bastante com advergames (combinação de publicidade e videogames), e projetos que utilizavam a tecnologia de jogos, mas não eram necessariamente jogos (como o que fizemos para Chevrolet, onde tu podias customizar seu possível carro em tempo real e 3D). Durante esse período, tivemos que nos virar, aprender e tentar muitas coisas. Acabei usando “many hats”, ou muitos chapéus, expressão usada aqui na indústria de games para designar quem tem vários cargos e faz coisas diversas num estúdio.

Toda essa experiência, período de tentativas e falhas, e também sucessos, me ajudou a diferenciar dos outros quando vim para o Canadá. Muita gente que estava “competindo” comigo por vagas de emprego, nunca tinha passado por experiências tão cruas e “hardcore”, como lutar pela sobrevivência da empresa, tentar contratos para pagar salários, ao mesmo tempo em que fazíamos projetos com grana curta e prazo menor ainda (risos!).

FV: De lá para cá, entre várias experiências até chegares onde estás hoje, liderando uma grande equipe de criação envolvida no FIFA, tu poderias dar uma “pincelada” rápida sobre a tua ascensão nesse mercado?

TC: No final de 2013, quando decidimos fechar a empresa e cada sócio seguir o seu caminho, comecei a planejar minha ida a Vancouver. Quando me formei na Vancouver Film School, vi muita gente ir trabalhar em lojas, ou cafés, até conseguir emprego. Como eu tinha formado um bom relacionamento com os professores e o diretor da escola, consegui uma vaga de professor assistente no programa de Game Design (desse jeito, ficaria integrado na indústria e continuaria conhecendo professores e alunos com que iria interagir futuramente). Claro, só podia trabalhar meio turno por causa da BCIT (20 horas por semana). Como estudava à noite, acabava ficando o dia inteiro na escola, aprendendo e ajudando, mesmo sendo pago por 20 horas semanais. Durante esse período comecei a dar aula para crianças aos sábados, consegui um dinheiro extra.

A autorização para residir de forma permanente saiu em 2016 (dois anos após minha chegada). Comecei a dar aulas em dois turnos na Vancouver Film School. Foi nesse tempo que comecei a buscar entrevista em empresas, aqui é muito difícil conseguir emprego na indústria, caso o visto de trabalho não seja longo, ou não haja visto permanente.

Em julho de 2016 surgiu uma oportunidade de entrevista na EA (Electronic Arts), especificamente para o FIFA Mobile. Eles gostaram da experiência que eu tinha, meu passado (em games e futebol). O fato de ser brasileiro pesou em meu favor para conseguir a vaga. Comecei a trabalho em agosto de 2016, e fiquei no FIFA Mobile até final de 2018. Durante esse tempo aprendi muita coisa, ganhei muito conhecimento, aprendi como a empresa fazia as coisas e consegui muitos contatos dentro da EA, em outras equipes de trabalho, mais especificamente o Sam Rivera, produtor do Gameplay do FIFA.

Em agosto de 2018, fui para o FIFA trabalhar com o Riverano Gameplay. O FIFA 19 estava saindo, então eu comecei a ajudar. Logo em seguida, começamos a discutir FIFA 20 e, como me destaquei nos primeiros meses, virei o responsável pelo Gameplay do modo VOLTA. Comecei a ganhar mais e mais responsabilidade, participei ativamente do desenvolvimento dos FIFA 20, FIFA 21, FIFA 21 Next Level e FIFA 22.

Durante o FIFA 21, virei o responsável pelo sistema de Passing, novo sistema da nova geração de consoles (Off-Ball Humanization), e também escrevi o Artigo de Introdução do Gameplay ( Clique aqui  e leia ).

Durante o FIFA 22, fui o responsável por várias etapas de desenvolvimento do jogo, incluindo o Machine Leaning e Hypermotion. Novamente, escrevi outro artigo na mesma linha ( Clique aqui e leia ) .

FV: O sonho de muita gente nova é atuar nesse segmento, embora as pessoas tenham a falsa impressão de que qualquer “nerd” consegue chegar, basta “fuçar” e aprender sozinho, talvez porque as primeiras grandes experiências que deram certo “vieram de garagens”. Qual é o primeiro passo para um adolescente brasileiro se iniciar nessa jornada? Tu tens experiência docente, poderias discorrer sobre isso? Tu és, também, um descobridor de talentos na tua área?

TC: O meu sonho sempre foi atuar nesse segmento, me lembro quando tinha 10 anos e ganhei o Pokémon Blue no Game Boy Color (nossa! foi naquele momento que decidi trabalhar em jogos, nunca me arrependi).

Essa ideia de “qualquer um consegue chegar, basta fuçar e aprender sozinho”, não é complemente errada. Desenvolver games nunca foi tão fácil como hoje, e sim, qualquer um que mexa e tente, bote a cabeça a trabalhar nisso, provavelmente vai fazer os seus próprios jogos. Esse é o primeiro passo, muito difícil ser bem-sucedido assim, tem que dar sorte, ter bom timing e tudo mais. Até os que “vieram de garagens”, fizeram mais de 20-30 jogos, antes de conseguir um de sucesso. Passo importante, na minha opinião, é aprender com pessoas que trabalham na indústria. Fazer jogos não é só programar, desenhar ou modelar. Tem muitos processos, planejamento, design, tem considerações, tem o aspecto dos negócios, enfim, o poço é muito fundo. O que aprendi na minha empresa foi muito bom para aprender “a me virar”, mas, não é apenas assim que a indústria funciona. A quantidade de informações que adquiri na Vancouver Film School foi imensa (em doze meses, aprendi mais do que aprenderia em 30 anos sozinho!).

Minha principal sugestão para alguém que deseja se iniciar nessa jornada (seja adolescente, ou não), é fuçar e tentar fazer coisas sozinho. Se gostar de fazer, procura uma escola técnica com pessoas que trabalham ativamente na indústria de games, tenta adquirir com eles as nuances e a experiência, não só o desenvolvimento.

Adorei meu período como professor, me ajudou muito a entender o lado mais pessoal, mais humano. Sim, estou e estamos sempre à procura de talentos, já consegui emprego na EA para vários ex-alunos ou colegas, pessoas que são boas e trabalham duro. Faço um convite aqui para qualquer um me adicionar no LinkedIn, ou Twitter, e falar comigo pessoalmente. Ficarei honrado em ajudar.

FV: Como bom brasileiro, pude ver no teu perfil do Linked, tu és apreciador de cafés e tens curso de barista. Isso é hobby, paixão paralela? E o Grêmio? Tens acompanhado com algum sofrimento, atualmente?

Grêmio é outra paixão do “nerd” gaúcho.

TC: Sim, adoro café. O meu plano era, se tudo desse errado, trabalhar de barista por aqui, até surgir uma oportunidade. Não precisei, mas tinha essa carta na manga (risos!). Hoje em dia, café é um hobby mesmo, tenho vários tipos, várias máquinas e adoro descobrir cafés novos e experimentar. Sobre o Grêmio? Bah! Nem me fala, não consigo não acompanhar, adoro sofrer, vejo quase todos os jogos. Tenho uma camiseta do Grêmio aqui na parede, e sempre aparece atrás de mim quando faço um zoom.

E aqui uma outra história real, um dos motivos pelos quais consegui o emprego inicial na EA, parece que foi por causa da tatuagem do Grêmio que tenho na perna (fiz no Brasil, recém-formado). Eu botei na Cover Letter (carta de apresentação) que tinha a tatuagem e eles pediram para ver na entrevista. Perguntaram um monte de coisas da minha experiência com o futebol e o Grêmio. Na perna direita eu tenho escrito bem grande: “Imortal Tricolor”.