Porto Alegre, segunda, 25 de novembro de 2024
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Luz no protagonista, por Ivan Mattos/Jornal do Comércio

Detalhes Notícia
Mauro Soares, ator e diretor de teatro MARCELO G. RIBEIRO/JC

 

 

Um ator no centro do palco, carrega consigo muito mais do que um bom texto, uma direção trabalhada, um figurino pesquisado, uma movimentação adequada. Um ator em cena carrega suas tantas vidas, vividas silenciosamente, ainda que com a cortina fechada, as luzes apagadas e as vestes de um cidadão comum. Alguns atores, os artistas verdadeiros, empregam suas vivências em seus personagens, carregando para o palco uma vida ainda por ser vivida, amores interrompidos, grandes perdas, desilusões, indagações, equívocos e enganos. E seus acertos, suas glórias e conquistas pessoais. Um ator quando sente que o pano se abriu, se ilumina, se entrega, se esvai um pouco a cada dia testemunhado pelo seu público. Mesmo que se critique ao final do espetáculo, esteve inteiro ali, viveu e morreu a cada noite ali, arrastando para as coxias o que restou de seu empenho. Quando Mauro Soares entrava em cena, todo esse mistério acontecia. Vinha junto de seu personagem, uma outra história, desconhecida para muitos, talvez até mais interessante e humana que a criada por um dramaturgo. De superação. Mauro da Luz Soares, o nome indicando a luminosidade, vivia sempre em cena, se decorava, se vestia cenicamente para andar pela vida, pelas calçadas do Centro Histórico de Porto Alegre, para frequentar os teatros, sentar à mesa dos bares com seus cotovelos imprescindíveis e astutos. Mauro talvez tenha sido um dos grandes transgressores de Pelotas, onde nasceu, e de Porto Alegre, onde sempre viveu. Se vestiu como quis, como achou adequado. Se maquiou e se adornou como um príncipe. Muitos anéis, bolsas imensas, lenços, chapéus, cabelos de todas as cores, sapatos exóticos. Foi usando saias que visitou o governador Eduardo Leite, no Palácio Piratini, em companhia do pai deste, grande amigo pelotense. Quem mais ousaria? Mauro, além de um talento nato, era inteligente, culto, falava diversas línguas, e como sempre dizia minha mãe, “era um rapaz muito preparado”. Em cena, se transformava, a voz grave, a interpretação correta, perfeita, cheia de subtextos, encantava ao primeiro impacto. Foi durante muito tempo, o ator fetiche de Luciano Alabarse. Era capaz de enfrentar com êxito qualquer personagem. Quando fez um vampiro, encarnou Bella Lugosi, como bem disse Zé Adão Barbosa. Quando viveu Alice Cooper, personagem criado por Caio Fernando Abreu, passou a andar como um punk, cabelos moicanos, descoloridos, interpretação sutil e melíflua. Na realidade, Mauro vivia no fio da navalha, na beira do abismo, flertava com o perigo e se arriscava no lado escuro da vida. Caiu e se levantou tantas vezes foi necessário. Parecia seguir um script beatnik ou underground dos mais pesados. Até que desistiu, se curou e conseguiu levar uma vida mais leve. Foi testemunha de tantas histórias que foram parar em um livro, escrito por Roger Lerina para a coleção Gaúchos em Cena, publicado em 2015. Mauro fez história para seus amigos e com quem conviveu com ele, de perto ou de longe. Sempre teve a frase demolidora se a situação pedisse. O humor mais afiado, a história mais interessante, engraçada, bizarra por vezes. Era o melhor amigo que alguém podia ter. Fiel e dedicado. Sua idade, ninguém sabia, muitos especulavam, e ele se divertia ocultando como o quarto segredo de Fátima. Uma de suas frases inspiradas e que mereciam estar em sua lápide é: Morrerei como sempre vivi, acima das minhas posses. Viveu e morreu acima de qualquer expectativa.