Atendendo à tendência normativa internacional, a recente Lei 14.197/21 estabeleceu os crimes contra o Estado Democrático de Direito na Parte Especial do Código Penal, todos em franca tutela do Estado de Direito e das suas instituições democráticas – fundamentalmente, condutas contra a soberania nacional, as instituições democráticas, o funcionamento dessas instituições no processo eleitoral e a regularidade dos serviços públicos essenciais. Não se discute, portanto, a necessidade de intervenção penal no campo da ordem democrática, sobretudo em razão da expressiva relevância dos bens jurídicos que foram protegidos.
O capítulo II, do título XII, “Dos crimes contra as instituições democráticas”, conta com dois tipos penais: abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e golpe de Estado (art. 359-M). Tais crimes tratam do Estado de Direito que se manifesta justamente por meio da regularidade e do funcionamento de suas instituições democráticas. Seria tecnicamente melhor que o título do capítulo fosse também dedicado ao Estado Democrático de Direito, vinculando o nomen juris aos crimes seguintes, que não tratam especificamente da tutela das instituições democráticas, o que acarretaria uma qualificação jurídica mais adequada. De outro lado, não se pode esquecer que a novel legislação fulminou o modelo de segurança nacional imposto no Brasil, adotando, com a tutela das instituições democráticas, um modelo constitucional de proteção e defesa do Estado. Em meu juízo, a opção pela criminalização não macula uma proposta de intervenção mínima de Direito Penal e contribui para a superação definitiva do antigo modelo autoritário, com a adequação ao paradigma trazido pelo texto constitucional , que protege a organização política do Estado, fundamentalmente em sua órbita interna.
Ocorre que a lei não conceituou o que sejam as instituições democráticas e as figuras penais tutelam o próprio Estado de Direito – em sua essência, a manutenção da ordem democrática. No ponto, quando se trata de proteção das instituições democráticas não há empecilho para um conceito alargado. A expressão deve ser compreendida de forma ampla, como instrumento do Estado que opere em favor de sua integridade, seu funcionamento e de sua própria realização enquanto Estado de Direito. Logo, o parlamento, o executivo, o judiciário e o serviço público essencial, pois a democracia é estruturada e se manifesta justamente por meio dessas instituições. A sua defesa representa a própria proteção da ordem democrática e a plena realização do Estado de Direito por meio da concretização dos direitos fundamentais.
Diante do quadro legal brasileiro, o que se viu na capital da República no último dia 8 de janeiro representa gravíssima ofensa a ordem democrática e suas instituições. Há indícios de crimes de alta repercussão. Os meios de comunicação mostraram uma série de crimes que foram praticados com violência e de forma grupal. É o que a doutrina denomina crime de multidão , do que são exemplos os linchamentos, as agressões de torcidas organizadas e as invasões coletivas de propriedades privadas ou de órgãos públicos. O que geralmente ocorre é que o tumulto praticado pela multidão que delinque deriva do sentimento de uma experiência de frustração que é comum a todos os membros do grupo, pessoas que, reunidas, com maior facilidade perdem os freios inibitórios, o que consequentemente acarreta o relaxamento do vínculo moral à lei. No plano jurídico-penal, essas situações enquadram-se na autoria coletiva, que torna típica qualquer conduta que integre o conjunto da ação criminosa da turba, havendo assunção de risco, ainda quando a prática é por instinto imitativo.
No caso do crime previsto no art. 359-L do Código Penal, que é classificado como comum e formal, o sujeito ativo não impõe qualquer condição especial, é aquele que tenta, com o preenchimento das exigências normativas, como a violência e a grave ameaça, a abolição da democracia. A doutrina trata a figura jurídica como um crime de atentado, também denominado crime de empreendimento, aquele em que se prevê na descrição típica o comportamento de se tentar o resultado naturalístico, afastando-se assim a possibilidade de reconhecimento da modalidade da tentativa. É claro que o crime exige como elemento subjetivo o dolo específico, pois há um fim especial de agir, ainda que praticado em crime grupal. No caso, tem especial importância a elementar típica de impedimento ou restrição do exercício dos poderes constitucionais, entendidos como os três poderes do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário. Atacar violentamente a Corte de Justiça do país, por exemplo, é forma de impedir ou restringir o exercício do poder constitucional, transparecendo que o ataque da turba pretendia a abolição do Estado Democrático de Direito.
De outro lado, é um erro invocar a Lei Antiterror na situação dos ataques de Brasília, pois o crime de terrorismo no Brasil, ao contrário de outros países, é praticado por um ou mais indivíduos, desde que por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, e quando cometido com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública (art. 2º, Lei 13.260/16). À primeira evidência, não estão presentes no ocorrido os imperativos legais do crime de terrorismo, além de faltar a essência do crime, qual seja: a finalidade de provocar terror social ou generalizado.
Nesse ponto, há de se ter redobrada cautela, pois a própria lei nacional excepciona as manifestações políticas ao tratar da criminalidade terrorista (parágrafo 2º do art. 2º: não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei).
Insistir no equívoco técnico é uma aventura jurídica arriscada. Aqui, o risco de uma interpretação alargada do crime de terrorismo pelo Supremo Tribunal Federal pode soar como usurpação de tarefa do legislativo. Além disso, a indevida ampliação ou inadequação técnica de eventual acusação gerará discussão jurídica desnecessária e retardará as punições dos crimes efetivamente praticados. Aliás, convém lembrar que o tratamento da criminalidade terrorista tem produzido efeitos deletérios no modelo garantista ao redor do mundo. É o que ocorreu após a publicação do Patriot Act, nos Estados Unidos, da Lei de Segurança Nacional e de Luta ao Terrorismo do Reino Unido e das declarações de Estado de emergência que acompanhamos na Europa, quando da guerra contra o terror. O antiterrorismo possibilitou um discurso de ampliação dos poderes do Executivo, inclusive para rastrear e interceptar comunicações dos cidadãos. A experiência internacional revela a criação de uma série de limitações aos direitos fundamentais, notamente dos direitos de liberdade, de comunicação, e do alargamento do tempo de prisão, assim como da limitação do habeas corpus, na redefinição do alcance da proibição da tortura e do tratamento cruel e degradante.
Até o momento, pouco se sabe sobre os eventuais agentes privados e públicos que realizaram, auxiliaram e/ou permitiram as práticas ilícitas perpetradas em Brasília. Os fatos dependem de pronta apuração. Há pessoas que praticaram crimes e outros tantos que se manifestaram e que não realizaram crime algum, provavelmente. Por outro ângulo, o que se percebe é que aqueles que organizaram e lideraram os ataques, para além de incidirem em crimes, conseguiram algo que não se viu nos últimos anos no Brasil, reuniram rapidamente, e do mesmo lado, o atual Presidente da República e os chefes dos demais poderes, os governadores dos Estados, os Ministros da Suprema Corte, o Procurador-Geral da República e os Ministros de Estado. E como era de se esperar, reuniram-se todos em repúdio aos ataques ao patrimônio público e em favor da democracia.
Alexandre Wunderlich
Doutor em Direito, Prof. de Direito Penal na Escola de Direito da PUCRS em Porto Alegre e de Direito Penal Empresarial no Curso de Mestrado Profissional em Direito no IDP em Brasília. Advogado.
Artigo publicado no CONJUR