Porto Alegre, quarta, 08 de maio de 2024
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Milton Neves está deixando a Tevê? Somente o Terceiro Tempo, ainda bem; por Felipe Vieira

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Com Milton Neves, no Comunique-se 2019. Foto: Arquivo pessoal

 

 

Desde o nosso primeiro encontro – que ele não lembra, no Prêmio Comunique-se 2019 – Milton Neves foi extremamente gentil, acessível e afável como deveriam ser todos os grandes quando em contato com os seus fãs. Comandante de programas memoráveis como Super Técnico e Terceiro Tempo, onde muito o ouvi, principalmente antes dos grandes confrontos de times paulistas contra o meu Internacional. Falamos rapidamente, fiz o registro fotográfico, a noite seguiu e a vida nos reuniu novamente, em vários outros momentos.

Menos de um ano após o primeiro encontro, estava eu circulando pelo prédio da Band, em São Paulo, quando resolvi dar uma passada no Estúdio 4, onde sabia que estava sendo produzido o Terceiro Tempo. Entrei discretamente, fiquei atrás das câmeras e, para minha surpresa, vi no monitor que o entrevistado era o meu grande amigo e irmão, Paulo César Tinga. Milton me encarou e eu, sem saber o que dizer, estava ali para ver o ídolo trabalhando de perto, balbuciei apontando para o Tinga no monitor: “Meu irmão!”.

Ele achou engraçado, me puxou para dentro do set, de improviso sem microfone, e perguntou no ar o que eu tinha dito. Eu repeti, o Tinga me viu e falou sobre a nossa “irmandade”, ao que o Milton brincou, dizendo que éramos realmente parecidos. Na versão dele, houve uma invasão: “O Felipe invadiu os bastidores do Terceiro Tempo, e já foi direto para o ar, durante a entrevista que o Tinga concedia”.

Lá naquele momento, nascia a improvável amizade entre os filhos de Muzambinho e Butiá. A gente sai do interior, mas o interior não sai da gente. Nos últimos três anos, raros foram os dias em que não falamos, ou trocamos mensagens. E muitas me envaidecem, como aquelas cheias de generosidade, onde ele diz que sou “um dos caras mais legais que eu já conheci, no mundo do rádio e da televisão”.

Receber tal declaração de afeto, vinda de sujeito do quilate de Milton Neves, não é pouca coisa, ainda mais se considerarmos tudo o que ele viveu nos meios de comunicação, e de quem foi companheiro nessa brilhante trajetória que construiu. Milton tem uma memória fantástica, recorda times e datas, verdadeira “Enciclopédia do Futebol”. Referência na comunicação brasileira pelos programas que o consagraram junto aos torcedores de todo o país, onde resgata gols e os lances mais relevantes do esporte, ou ainda por onde andam grandes craques e cronistas de outros tempos, incluindo homenagens àqueles que já faleceram. Por sinal, num texto publicado no UOL, ele próprio comunica que está deixando a tevê. Mas, não é bem assim, ele deixa o Terceiro Tempo, mas seguirá com o ‘Que fim levou?’ e também ‘Gol: O Grande Momento do Futebol’. A atração teve destaque na emissora durante os anos de 1999 a 2001, sob o comando de Alexandre Santos e do próprio Milton voltará – desejo antigo do Miltão – … ainda bem.

Milton começou em 1967, na Rádio ABC. Desde então, viu muita coisa ao longo de sua bem-sucedida carreira, que inclui, além da Band, passagens por outros grandes veículos do país. Criado no rádio, camaleão da comunicação, soube transformar-se e hoje é multimídia. Seis milhões de pessoas o seguem nas redes sociais, onde ama polemizar com torcedores dos grandes times e, muitas vezes, também na política. Por isso, não é raro arrumar desafetos e tudo bem, vida que segue.

Em nossas conversas, públicas ou privadas, uma frase é repetida muitas vezes: “O rádio me levantou na vida, eu não tinha nada”. Milton hoje é dono de um patrimônio invejável, que ele fez por merecer com talento e muito suor, como ele escreve no seu texto de despedida, credita ao trabalho e ao amor da vida. “Minha doce e inigualável Lenice Chame Magnoni Neves, que criou e cuidou muito bem de nossos três meninos, enquanto eu trabalhava feito um louco de sol a sol nas emissoras pelas quais eu passei”. Não conheci D.Lenice, mas grandes homens como Milton atraem para o seu lado gente do bem, e ela foi muito do bem.

Ao longo de nossos bate-papos, verdadeiras miscelâneas de temas, falamos é claro de futebol, mas também de vinhos e até sobre a Revolução Farroupilha. E ele, para descontrair e provocar, reforça o “equívoco proposital” ocorrido quando, por brincadeira, falou que eu era gremista e recebeu dezenas de manifestações corrigindo o “erro”.

Milton, que já surpreendeu com o “convite para invadir o Terceiro Tempo” na entrevista do Tinga, também me emocionou com a sua generosidade, permitindo que eu entrevistasse um dos meus ídolos colorados. A agilidade e a ideia vieram do produtor Guilherme Cimatti, mas a gentileza de conceder o tempo foi dele.

Noutro episódio, durante conversa na Rádio Bandeirantes, em 21 de agosto de 2022, foram colocados trechos de partidas do Inter. Primeiro, um gol de Flávio na campanha do Octa, em 1976, narrado pela dupla Luís Carlos Prates e Haroldo de Souza (Rádio Gaúcha). Em seguida, a voz do grande Armindo Antônio Ranzolin narra um gol do melhor jogador que vestiu o manto sagrado, Paulo Roberto Falcão no Beira-Rio, dois a zero sobre o Vasco, na partida de volta da grande final do campeonato invicto em 1979, incluindo o trecho do áudio com o coro da torcida cantando a versão brasileira de Cielito Lindo: “Ai, ai, ai, ai. Tá chegando a hora. O dia já vem raiando meu bem ….”

Milton não sabe, mas me proporcionou um dos momentos mais emocionantes de toda a minha longa carreira radiofônica, que já completou quatro décadas. Lembrei de meu pai, porque mencionamos o grande Oreco, craque colorado que foi reserva de Nilton Santos na Copa da Suécia, em 1958. Por óbvio, nunca o vi jogar. Mas, de tanto ouvir o Seu Romeu falar a respeito, eu o “escalava” nos meus times de botão da infância. Quando surgiu na conversa a gravação do famoso gol iluminado de Figueroa, Inter contra o Cruzeiro, as palavras começaram a faltar e a minha fala engasgou. O cruzamento do Valdomiro caiu, justamente, na parte do campo em que havia sol. E por ali entrou o chileno para anotar o gol. Emocionado, chorei e a voz deu uma embargada. “Para piorar”, do outro lado da linha, também emocionado, estava ninguém menos do que Dom Elías Figueroa.

Estive poucas vezes em sua presença, e nunca tive coragem de falar muito com ele. Para nós, colorados, Figueroa está preservado na memória das grandes conquistas, responsável direto por mudar o Internacional de patamar. O chileno veio para o Inter no auge de sua carreira, era o melhor zagueiro do mundo, poderia ter ido para o Real Madrid, mas optou pelo Beira-Rio. Ele também embargou a voz, quando lembrou de sua glória aqui no desporto nacional. Ao conversar com ele, arrisquei um espanhol nem tão fluente, mas eficiente, e escutamos com os ouvintes do programa algumas de suas histórias, entre elas o fato de ser leitor de Neruda, que chegou a conhecer pessoalmente, e de quem diz longos poemas de memória. A seu respeito, Armando Nogueira escreveu: “Figueroa transforma a grande área num latifúndio”. De fato, o próprio jogador costumava dizer, meio como provocação aos adversários: “A grande área é minha casa. Aqui só entra quem eu quero”.

E as memórias afloraram. Em 1975, aos nove anos, meu pai nos levava ao Beira-Rio, meu irmão e eu, não apenas para ver aquele que foi um dos maiores times de todos os tempos, rara união de grandes talentos ao mesmo tempo no clube. Eu era um projeto de zagueiro – perna-de-pau – e olhava com admiração para um dos maiores zagueiros do mundo, em todos os tempos, eleito o melhor zagueiro da Copa de 1974 (e atuou ainda em outros dois mundiais de seleções). Vestindo a camisa colorada, Figueroa fez 26 gols em 336 jogos. Hexacampeão gaúcho (71/72/73/74/75/76) e bicampeão brasileiro (1975/76). Disputou 17 clássicos Grenal, perdeu apenas um. Um zagueiraço que nunca foi expulso. O Milton Neves não sabe como fez alegre o menino colorado, naquela manhã em que proporcionou o contato com o ídolo, o Capitão dos Andes.

Milton está se despedindo da TV. Fará falta. Ainda bem que seguirá no rádio, blog e redes sociais, mantendo a independência que é tão importante para todos nós, a língua afiada, a memória privilegiada e a capacidade inabalável de seguir contando histórias. “Vendendo o passado, jogador velho é comigo mesmo.”

E eu seguirei seu ouvinte e leitor cativo, através das ondas hertzianas, do blog, aplicativos e também das nossas longas trocas de mensagens via celular, torcendo para que ele agora tenha mais tempo e possamos nos encontrar em almoços e jantares regados a bons vinhos. Se me apraz ouvir o Milton, prazer ainda maior é conviver com ele. E isso eu espero que ainda aconteça por muitos e longos anos, nessa inusitada amizade entre o muzambinhense e o butiaense.