O diretor e produtor teatral e escritor Caco Coelho sempre se definiu como um “rodriguiano doente”. Mergulhou na obra de Nelson Rodrigues, editou oito livros sobre o escritor pernambucano e se envolveu em pelo menos vinte montagens de seus textos ao longo da carreira, como VALSA Nº 6, um dos mais densos espetáculos do autor, e o último que estreou em 2017.
Seu mais recente projeto, “Dossiê Rodrigues – a genealogia (1900-1934)”, foi desenvolvido em várias etapas, ao longo de 25 anos, onde foram consultadas mais de duzentas mil páginas de jornal e centenas de sites, livros e teses acadêmicas. A obra, que está à venda no site Estante Virtual, tem orelha assinada pelo diretor de teatro Zé Celso – falecido em julho deste ano –, 1.107 páginas e mais de cinco mil notas de rodapé.
Baú de Nelson Rodrigues
A convivência de Caco Coelho com a obra de Nelson Rodrigues começou em 1991, como diretor-assistente de Antonio Abujamra no espetáculo “A Serpente”, na companhia que criaram juntos, Fodidos Privilegiados. “Fodidos, porque fazíamos teatro. Privilegiados, idem. Por muitos anos, a companhia serviu como porta de entrada para diversos artistas que chegavam ao Rio de Janeiro, mas corria riscos. Um dia, a atriz Rose Abdalah me liga – eu trabalhava na TV Globo, no Você Decide, programa para o qual o Roberto Talma tinha me convidado para me ‘formar um diretor de novelas’ – preocupada com o grupo acabar. Então me lembrei que o Renato Beninatto, um dos fundadores de Fodidos Privilegiados, havia assistido em Nova Iorque um espetáculo que reunia trechos de todas as peças do Shakespeare. Pensei: ‘Por que não fazer a mesma coisa com o nosso maior dramaturgo?’ Dei a ideia na reunião do grupo, e Abu propõe: ‘Por que não ir atrás dos textos que estão além do teatro?’. Daí surgiu a faísca definitiva, que estabelece o campo desta pesquisa’, conta o autor, que complementa:
“O que estará em foco aqui, neste livro, é a construção da obra e sua ancestralidade, a antecâmara, a fim de traçar uma genealogia rodriguiana. Os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia. Ou ainda: não é o poeta que interessa e sim a obra.”
No início, Caco Coelho verificou apenas duas cronologias existentes, a do Sábato Magaldi, disposta na sua Fortuna Crítica, e na biografia escrita pelo Ruy Castro. Segundo ele, as duas se assemelham, inclusive nos erros e acertos, traçando uma mesma trajetória para a vida e obra. Lá encontrou, estarrecido, vários registros da existência de “obra inédita em livro”. “Como assim? Como é possível, tantos anos após a morte de Nelson, existir ‘obra inédita’?
O propósito da pesquisa encontrou lastro em um texto do jornalista Paulo Francis, quando da morte de Nelson, em 1980: “O que talvez não seja tão inocente quanto o esquecimento de quatro operações é que a ninguém ocorreu perguntar como um autor famoso de vinte peças, inúmeras crônicas, peças e textos filmados, vários romances, quase tudo obtendo grande audiência, tenha morrido deixando praticamente nada. O excesso de trabalho sem dúvida lhe apressou a morte”.
Nelson Rodrigues, em uma das frases para as quais passou a vida inteira trabalhando, disse: “O Brasil é muito impopular no Brasil”. A antítese dessa frase é a razão central da obra rodriguiana, movida no sentido da construção da nossa identidade. Um Brasil que supere o ‘complexo de vira-latas’. Até que um dia o Zé Celso disse a Caco Coelho sobre a pesquisa da obra do Nelson: “Está tudo em Pernambuco. Tenta buscar o que tem lá”.
“Este ‘Dossiê’ busca evidenciar uma constatação: a conspiração que foi feita pelos Rodrigues para que surgisse o ‘rodriguiano’ como um caminho estético. A verificação é que essa conspiração extrapola os Rodrigues ao comungar com boa parte daquela geração de jornalistas, coautores deste livro. O esplendor da linguagem utilizada, a riqueza, o contraste, os sabores daquela época somente mantiveram-se vivos pela beleza fascinante que esses escritos possuem. Portanto, mais do que um agradecimento, é um reconhecimento. Trata-se de um livro escrito a centenas, quiçá, milhares de mãos. É a tentativa de oferecer aos artistas, aos jornalistas, aos estudiosos, pensadores e leitores de um modo geral – mas, principalmente, aos apaixonados – elementos para a compreensão deste vil silêncio, nada inocente, em relação à constituição profunda da complexidade da obra rodriguiana”, enfatiza o autor.