Médicos e médicas que se graduaram na Faculdade de Medicina da UFRGS (Famed/UFRGS) de meados dos anos 1970 ao final dos 1980 tiveram formaturas peculiares, todas elas marcadas por protestos ou algum tipo de irreverência. Durante 17 anos, nenhuma turma escolheu, entre seus professores, um paraninfo, e muitas não tiveram homenageados.
Na maior parte da década de 1980, os estudantes se negaram a usar a beca ou toga e a seguir o protocolo formal, promovendo solenidades irreverentes. Estes fatos, relacionados ao contexto da época – passando pelos “anos de chumbo” da ditadura militar e pelo início do processo de redemocratização do país – tiveram grande impacto, por acontecerem em uma das mais tradicionais faculdades gaúchas, onde as formaturas solenes possuem forte simbolismo como ritos de passagem e status. Em três anos ao longo desse período, as cerimônias oficiais chegaram a ser suspensas pela direção da faculdade, inconformada com a sequência de protestos.
Essa história, iniciada há exatamente 50 anos, é relatada no livro Beca, Canudo e Protesto: contestação e irreverência nas formaturas da Faculdade de Medicina da UFRGS de 1974 a 1990, da jornalista Elisa Kopplin Ferraretto e do médico e professor da Famed/UFRGS Elvino Barros. Para recuperá-la, os autores coletaram depoimentos de mais de cem pessoas formadas no período, e que viriam a ocupar posição de destaque na assistência, ensino, pesquisa e gestão em saúde. Também realizaram ampla pesquisa histórica e documental para contextualização da época e ilustração da obra, incluindo convites de formatura, discursos, fotografias, publicações na imprensa e em jornais estudantis, além de vídeos de formaturas dos anos 1980 e até o áudio de parte da solenidade de 1975 (todos acessíveis no livro via QR-Code).
Em 1974, descontentes com a precarização das condições do ensino ao longo de seu curso na Famed/UFRGS – devido, principalmente, à implementação da chamada reforma universitária pelo regime militar –, os formandos decidiram fazer um protesto. A forma encontrada, naquele tempo de restrições à liberdade de expressão, foi mexer no rito de um dos mais tradicionais símbolos da instituição: a formatura. A turma decidiu não escolher, entre seus professores, nem paraninfo nem homenageados – o que foi tão impactante que virou notícia nacional (um tanto distorcida, na avaliação dos estudantes) na revista Veja.
O protesto acabaria inaugurando uma nova tradição, que perdurou até 1990, período durante o qual nenhuma turma da Faculdade escolheu paraninfo. Ou não, pelo menos, entre seus professores. A de 1975 elegeu o professor e ex-diretor Sarmento Leite, falecido 40 anos antes, e, como homenageados, Osvaldo Cruz, Vital Brasil, Carlos Chagas, Adolfo Lutz e Noel Nutel, sanitaristas todos também já mortos. Com isso, os formandos buscaram sinalizar a queda na qualidade do ensino médico e seu distanciamento da realidade social brasileira. Em diferentes anos houve, ainda, formandos que preferiram escolher, a título de paraninfo, um prédio – a antiga sede da Famed, na rua Sarmento Leite, que deixou de pertencer a ela em 1974, também em decorrência da reforma universitária – ou instituições – a Santa Casa e o então jovem Hospital de Clínicas de Porto Alegre –, por considerarem terem sido mais relevantes em sua formação.
Em 1979, inconformada com a sequência de protestos, a direção da Famed suspendeu a formatura oficial. Os estudantes, porém, organizaram uma solenidade por conta própria na Assembleia Legislativa, na qual o orador da turma, Gilberto Schwartsmann, pronunciou um discurso crítico e emocionado todo escrito em versos.
Em meados dos anos 1980, os formandos, além de seguirem sem paraninfo, aboliram o uso da beca e introduziram diferentes elementos lúdicos nas solenidades, como forma de expressar seu anseio por liberdade em meio ao processo de redemocratização do país. Em 1985, os formandos planejaram ignorar totalmente o protocolo e transformar a formatura em uma peça de teatro, encenando problemas vividos durante o curso. A ideia só não se concretizou porque o estudante que começava a organizar os trabalhos, Júlio Conte, recebeu convite para apresentar no Rio de Janeiro sua peça que conquistava enorme sucesso, Bailei na Curva, e teve que adiar a conclusão do curso.
Editado pela Libretos, Beca, Canudo e Protesto tem 352 páginas e contou com o apoio cultural da Associação Médica do RS (Amrigs), Sindicato Médico do RS (Simers), Unicred Porto Alegre e Fundação Médica do RS (FundMed). O lançamento ocorre em 5 de setembro, às 10h30, no anfiteatro do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. No evento, cinco profissionais graduados no período vão compartilhar memórias sobre suas formaturas e, na sequência, a palavra ficará à disposição de outros ex-estudantes que desejarem se manifestar. Ao final, haverá sessão de autógrafos com os autores.
PROGRAMA DO LANÇAMENTO
1974: A turma que cumpriu o corajoso dever da honestidade
Adamastor Pereira – Professor da Famed/UFRGS e cirurgião vascular do Hospital de Clínicas
1975: Dom Quixote, Sarmento Leite, sanitaristas mortos e uma mesa vazia
Valter Duro Garcia – Coordenador hospitalar de transplantes da Santa Casa de Porto Alegre
1977: Tempos difíceis para a maior turma da história da Famed
Clotilde Druck Garcia – Chefe do Serviço de Nefrologia Pediátrica da Santa Casa de Porto Alegre e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFSCPA)
1979: Uma resposta poética à proibição da formatura
Gilberto Schwartsmann – Oncologista, professor aposentado da Famed/UFRGS e presidente da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre
1985: Uma ideia inédita para a formatura acaba bailando na curva
Júlio Conte – Psicanalista, dramaturgo e diretor de teatro
Microfone à disposição de integrantes de outras ATMs
Sessão de autógrafos com os autores de Beca, Canudo e Protesto