A quinta-feira 26.09, marca os 88 anos de Luis Fernando Veíssimo, para comemorar o Canal Brasil programou o documentário VERISSIMO, de Angelo Defanti. Puro cinema de observação, câmera posicionada em vários lugares da casa de LFV e Lúcia. São registros dos dias que antecederam os 80 anos do escritor. O casal e familiares permitiram que o cineasta acompanhasse a intimidade do lar e suas relações durante dias, enquanto se aproximava a data do octogésimo aniversário.
A filmagem entrou no cotidiano da casa, e os 90 minutos da película são fruto de quase 100 horas de material. O filme apresenta um lado de Verissimo pouco conhecido, mesmo para quem é fã da obra literária. A uma hora e meia fez com que eu rememorasse a minha relação com os personagens. O primeiro livro que comprei com o dinheiro de uma mesada foi “O Rei do Rock”, da Globo Livros, no ano de 1978. Impulsionado por crônicas que já lia em Zero Hora, mas também pela massiva propaganda na então TV Gaúcha, me apaixonei pelo cronista.
Imortal sem fardão, homem de vida reservada e poucas palavras, o escritor gaúcho foi acompanhado pela lente do cineasta. Em setembro de 2016, às vésperas da data emblemática, o cotidiano da casa no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, foi capturado em imagens que, após oito anos, podem ser vistas pelo fã-clube de Verissimo. O filme já esteve na mostra competitiva de longas brasileiros no Festival É Tudo Verdade 2024 e agora está no Canal Brasil.
Como jornalista e contemporâneo dos filhos Fernanda, Mariana e Pedro, a vida me oportunizou alguns encontros com o patriarca do trio. Ele sempre comedido nos cumprimentos e conversas, o que era compensado por Lucia com seus olhos vivos e atenção. Muitas vezes, o local onde nos “esbarramos” foi o restaurante Barranco, algumas com a presença de dois amigos em comum, Ruy Carlos Ostermann e Ibsen Pinheiro. Ali eu não tinha lugar de fala, mas era um privilegiado ouvinte do colóquio entre eles.
Nosso primeiro encontro profissional, entrevistador x entrevistado, foi nos anos 1990, aconteceu quando o jornalista e produtor da Rádio Gaúcha, Gerson Silva, convidou Verissimo para uma entrevista que encerraria o Gaúcha Fim de Semana. Eu estava de substituto do Domingos Martins e, confesso, temi pelo pior (travar na frente do cronista brilhantes que não fala muito). O encontro deveria durar 90 minutos. Os mais longos
da minha vida. Ao final a conversa foi ótima, dela resultaram dois inesquecíveis elogios. Na saída do estúdio, Lucia que o acompanhava na gravação: “Nunca ouvi ele falar tanto e sobre tantas coisas.”. E outro veio de um homem de rádio, Armindo Antônio Ranzolin. “Parabéns, fizeste uma grande entrevista com o Verissimo. Guarde-a.” Desconheço, mas é possível que a Fé Emma Xavier tenha colocado esse momento nos arquivos da emissora. Para mim, a lembrança é ótima e prefiro ficar com a memória, ao invés de ir atrás do áudio e não gostar do que está gravado.
Naquele dia, Lucia fez uma revelação que me ajudou a compreender o porquê daquele homem que faz as palavras fluírem tão bem nos textos, e não as liberta na fala com a mesma velocidade e eloquência, seguir concedendo entrevistas, mesmo que deixasse educadamente transparecer o seu desconforto as mesmas. Ainda que fosse, por exemplo, com os amigos Ostermann e Jô Soares. Afinal, por que ele seguia indo a programas de rádio e televisão? A companheira de toda vida sussurrou: “Ele não sabe dizer não”. Fiz essa pergunta ao próprio escritor, em nosso segundo encontro profissional, dia 24 de setembro de 2016, antevéspera do seu aniversário de 80 anos. Foi no programa “21h30”, que então comandava na TVU. A resposta você pode conferir no vídeo abaixo, ou no documentário VERISSIMO onde, numa passagem do filme, o diretor Angelo Defanti mostra a incapacidade do entrevistado em dizer não.
Em 26 de setembro de 2016, veiculei a entrevista feita com perguntas autorais e de convidados. O encontro ocorreu em sua residência. Mais uma vez, temi pelo pior. Descontados os problemas técnicos na captação de áudio e vídeo, gostei do resultado. Foi maravilhoso ter a oportunidade de entrar na intimidade do autor genial que sempre admirei como um dos maiores intelectuais brasileiros, jornalista, cronista, jazzista e colorado.
No início do encontro, perguntei a ele sobre a forma como, àquela altura, enxergava a própria obra. Verissimo, humilde, respondeu que alguns de seus livros irão perdurar, outros nem tanto. “Muita coisa não fica”, afirmou o autor com mais de 80 obras publicadas. Ainda sobre a produção literária, o filho de Erico e Mafalda resumiu com simplicidade. “O importante é ter essa ideia do dever cumprido, ter conseguido realizar aquilo que foi idealizado”. Dos autores brasileiros contemporâneos, o criador do Analista de Bagé mencionou o premiado amazonense Milton Hatoum. Sobre os livros que costuma reler seguidamente, destaque para o “O Grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald.
Das coisas que ele não realizou e gostaria, bem-humorado, Luis Fernando aludiu a uma hipotética volta ao passado. O eventual LFV de 30 anos, segundo ele próprio, teria se aprofundado mais em estudos de música, uma das coisas que lhe dá bastante prazer. “O futuro agora é cada vez mais curto. Não dá para pensar muito no que ainda falta fazer”. Integrante da banda Jazz 6, na verdade formada por cinco músicos, Verissimo divide o gosto pelo Jazz com Luiz Fernando Rocha, no trompete e flugelhorn, Adão Pinheiro no piano, Jorge Gerhardt no contrabaixo elétrico e Edison
Espíndola, baterista.
Luis Fernando aprendeu a gostar do jazz quando, aos 16 anos, foi morar com os pais em Washington. Uma vez na terra do jazz, desejou aprender a tocar o trompete, instrumento do ídolo Louis Armstrong. Verissimo acabou “escolhido” pelo sax alto porque, na escola americana em que se matriculou, só havia esse tipo de instrumento para emprestar. Na época, as músicas eram apreciadas por meio de elepês e rádios. O primeiro disco mais estimado, recorda, foi um Louis Armstrong que Erico Verissimo comprou e ele escutava dia e noite. “Eu só confio em músico de jazz que esteja morto, no mínimo, há 20 anos. Esse jazz moderno eu não tenho acompanhado”.
Levei para a entrevista questionamentos de pessoas conhecidas dele e do grande público. A primeira pergunta, encaminhada pelo saudoso jornalista Paulo Moreira, foi sobre o seu músico predileto. Ao recordar que assistiu Charlie Parker ao vivo, Luis Fernando reiterou que o músico é o seu jazzista favorito. “Um gênio que morreu muito moço, não se sabe o que ainda poderia realizar, mas eu o escolho como o melhor jazzista”. Quando conheceu a música de Parker, ainda era acostumado ao jazz mais tradicional, e Charlie foi quem lhe mostrou um jazz mais moderno. “Charlie Parker foi
uma espécie de mudança de rumo para mim, como ouvinte de jazz”.
Na resposta à pergunta do cronista esportivo Lauro Quadros, também um homem público com aversão a telefones celulares, o consagrado autor fez uma dura crítica social à ferramenta tecnológica que considera útil, embora ao mesmo tempo possa ser desagregadora e atrapalhar as relações interpessoais. “Sou contra o celular. Eu acho que alterou muito o convívio entre as pessoas, às vezes, substituindo a conversa e o contato cara a cara”. Ainda sobre novas tecnologias. Verissimo não acompanha redes sociais e afirma que é impossível controlar a profusão de textos falsamente atribuídos
a ele.
Professor e crítico literário, Luis Augusto Fischer questionou sobre a relação do autor com a dimensão do pai. Como foi a experiência de ser filho do Erico Verissimo e sobreviver à força da obra do criador de O Tempo e o Vento? “O pai não se dava tanta importância, apesar do tamanho que teve, e isso facilitou muito o nosso convívio. Eu comecei a escrever tarde, com uns 30 anos, mas descobri que conseguia fazer aquilo, talvez porque já tivesse lido muito”. Segundo Luis Fernando, sempre que lhe perguntam sobre a relação com o pai, surge a tentação de inventar alguma coisa dramática, mas nunca houve nada disso. Apesar de filho do grande romancista, ele nunca mostrou seus textos ao pai, antes de publicar. Erico tomava conhecimento e lia quando já estavam publicados.
Outro saudoso amigo, o jornalista e escritor Davi Coimbra, à época residindo em Boston, perguntou ao Verissimo sobre um eventual paralelo entre o capitão Rodrigo Cambará, da saga de Erico, com o analista de Bagé. Luis Fernando negou a semelhança, e disse que o personagem de humor não foi construído com essa intenção. Também recordou que o analista nasceu como garçom e o personagem chegou a ser utilizado por Jô Soares, antes de tomar a forma definitiva consagrada por milhões de leitores.
Em 2016, sobre a política no Brasil, às vésperas de completar 80 anos, Luis Fernando Verissimo também falou um pouco. Questionado pelo jornalista Luiz Gonzaga Lopes, falou sobre a relação do pai com a obra Incidente em Antares, publicada em pleno regime militar. Luis Fernando lembrou que o Erico costumava definir-se como um “socialista democrático”, alguém que não tolera autoritarismo de esquerda ou direita.
Na sequência, ao falar sobre as esquerdas mundial e brasileira, naquele momento pós-impeachment de Dilma, declarou-se decepcionado, também porque a extrema direita e as tendências totalitárias vinham ganhando terreno em nível mundial. “Eu sou otimista também porque, cedo ou tarde, as pessoas irão se convencer de que o caminho para uma sociedade mais justa é pelo socialismo”, declarou o autor, que então costumava receber muitas cartas desaforadas com xingamentos por causa de suas posições políticas.
Notório torcedor colorado, LFV é um dos grandes cronistas brasileiros que, ao longo do século XX, dedicou uma parte de sua produção literária ao futebol. E o craque Paulo Roberto Falcão também encaminhou a sua pergunta ao escritor. Durante a resposta, Verissimo lembrou das três grandes fases que acompanhou na trajetória colorada: o lendário Rolo Compressor, depois o time comandado por Larry e Bodinho e, por último, o grande Internacional que sagrou-se campeão brasileiro em 1975-76- 79.
A jornalista e escritora Cláudia Laitano, outra amiga que enviou questionamentos ao autor, direcionou sua pergunta à fase do Verissimo redator de tevê. Ele quis saber qual foi o trabalho predileto do escritor naquela etapa, mas ele afirmou ser difícil escolher algum em específico, além do “piloto” para o Analista de Bagé, personagem que começou a nascer naquele período. O editor e escritor José Antônio Pinheiro Machado, também conhecido como Anonymus Gourmet, questionou sobre a famosa revista de humor O Pato Macho, cujo diretor de redação foi o próprio Verissimo. “O Pato Macho teve uma vida curta, mas gloriosa. Foi em pleno período Médici, durou 15 números”, explicou Luis Fernando, que também recordou a pressão sofrida durante a ditadura, inclusive com a perda de anunciantes e o fim precoce do jornal que seguia uma linha editorial semelhante ao Pasquim. “Nós sabíamos o que podia escrever ou não. Falar mal dos militares, nem pensar. Citar Brizola, ou Dom Helder Câmara, também era desaconselhável”.
Luis Fernando esteve em várias coberturas de Copas do Mundo, sendo a primeira pela revista Playboy. As outras ele fez como integrante das equipes dos jornais Zero Hora, Jornal do Brasil e O globo. Como torcedor brasileiro, acredita que o maior fiasco na história do escrete canarinho não foi o Maracanaço em 1950, e sim a derrota de 7X1 para a Alemanha, em Belo Horizonte na Copa 2014.
Homem de muitos carimbos nos passaportes, admite a dificuldade em escolher um lugar, dentre tantos roteiros prediletos e revela que gostaria de conhecer mais uma região em especial. “O que eu gostaria de conhecer melhor e não pude, embora conheça um pouco, são os países da Escandinávia, particularmente a Dinamarca”. A melhor viagem, o escritor considera aquela que fez com a família a Paris, onde ficaram por quase um ano. Os Verissimo também moraram em Nova Iorque e Roma.
Foi ótimo ver o documentário VERISSIMO e rememorar contatos que tive com o homenageado. O filme de Defanti oportuniza contemplarmos Luis Fernando na essência pacata do lar, quebrada apenas pela presença dos netos Davi e Lucinda (ela protagoniza uma cena em que mostra a genuína imaginação de uma criança, e nos faz pensar que, para além dos três filhos, a criatividade seguirá presente na família). Das curiosidades que não são totalmente reveladas, estão as fotos da família guardadas num baú (eu queria mais imagens desse rico e amoroso passado). O filme vale muito a pena assistir. Mostra o cotidiano de silêncios que falam por si, e um Verissimo romântico, muito romântico, ao dizer que sua principal fala na vida foi
quando pediu a Lucia em casamento e ela disse sim. Vida longa ao amor dos dois.
Em 2024, LFV completa 88 anos. Oito é o símbolo do infinito, como infinita e eterna é a obra de Verissimo.