27 de maio passará a ser lembrado por mim, que convivi com ele numa relação fraterna de anos a fio, como O Dia dos Chopes Cremosos. É mais interessante lembrar dos amigos mortos pela pujança, na memória das coisas boas da vida, eternidade que se perpetua a cada instante, neste exato momento, e poucos percebem quando as urgências do cotidiano nos levam adiante em tropelia. Hoje, em tempos de rede social e aplicativos de mensagem, quase não resta tempo à contemplação descompromissada, dolce far niente, ferramenta essencial à produção literária de autores talentosos, como o meu companheiro de batalhas gloriosas David Coimbra.
Não lido bem com as perdas, tenho dificuldade em escrever sobre a partida de pessoas às quais tenho elevado apreço. Há vários casos de parentes e amigos que se foram e eu, no máximo, consegui formular uma ou duas frases. Falei a respeito com o David, quando perdemos o “Professor Juninho”, apelido do também jornalista e professor universitário, Luis Fernando Gracioli, em 2019, em decorrência de um câncer.
Desde ontem, quando comecei a acompanhar o agravamento do quadro de saúde do meu amigo, percebi que, desta vez, não teria a reviravolta positiva. Me peguei pensando no encontro dos dois, entre tantos outros que já partiram. A ideia de que existe um outro plano, e nele reencontraremos nossos afetos, acalenta-me.
Houve uma época, lá pelo final da década de 90, meados do novo milênio, em que jurávamos ao final de cada madrugada, e muitas vezes iluminados pelos primeiros raios de sol, que na noite seguinte não nos encontraríamos para novos chopes e acepipes. Juramento raramente cumprido. Ato contínuo, lá estávamos outra vez.
O David escreveu, com talento infinitamente maior, sobre essas noites e, entre elas, a inesquecível dos 600 chopes entre amigos. Discorreu, da mesma forma, sobre nossos jogos de futebol e paixões. Quando soube que eu seria pai, ligou falando sobre o Bernardo e a sua experiência com a paternidade. Quando tomei conhecimento do câncer que enfrentava, mesmo consciente da gravidade, ouvi dele a certeza de que venceria a luta. Disposto a tornar-se cobaia, saiu vitorioso e escreveu divinamente a respeito da experiência, deixando em livro um relato poderoso e contundente, narrando o que passou ao lado da esposa Marcinha e o filho Bernardo (Hoje Eu Venci o Câncer; L&PM, 208 páginas).
Quando perdi os meus pais, recebi carinho e uma coluna dedicada ao amor do seu Romeu e dona Ilda. Sentar e escrever sobre a partida do amigo, cronista da nossa geração, traz um alívio. Ficam as lembranças dos grandes momentos partilhados – até porque, com aquela narrativa, o David dava grandeza aos pequenos momentos que passariam desapercebidos à maioria (não a ele, repórter do cotidiano, olhar aguçado para extrair a melhor história em cada instante).
Um “Golias” chamado David
Natural de Porto Alegre, havia completo 60 anos em 28 de abril. Colunista de Zero Hora e GZH, faleceu após quase uma década de batalha contra o câncer. É um dos jornalistas mais reconhecidos do Rio Grande do Sul, cronista acostumado a ilustrar a vida cotidiana e a paixão pelo futebol, pelos amigos e a boa polêmica, sempre com bom-humor e, muitas vezes em tempos de rede social, enfrentando hordas de pessoas raivosas por contrariedade.
David começou a enfrentar problemas de saúde em 2013, após o diagnóstico de um tumor no rim esquerdo. Passado algum tempo, descobriram que a doença já havia avançado em silêncio (metástases ósseas para outras três partes do corpo). Depois de cirurgia e tratamentos infrutíferos, viajou aos Estados Unidos para dar sequência ao tratamento com técnicas recentes não consolidadas (estudo clínico que testava a aplicação de imunoterapia — o paciente recebe a droga e ativa o sistema imunológico). Em Boston, escreveu para Zero Hora e GZH, e ancorou o Timeline da Rádio Gaúcha.
Repórter, atuou nas editorias de Geral e Política, inclusive em períodos conturbados da história recente gaúcha, como a morte do então deputado estadual, José Antônio Daudt (1988). Em livro, ele reconstruiu momentos da vida do também ex-deputado Antônio Dexheimer, considerado à época o suspeito número um, posteriormente absolvido, após célebre atuação do consagrado criminalista Lia Pires, então a grande vedete dos tribunais. Foi editor-executivo na editoria de Esportes em ZH. Em parceria com o amigo e jornalista Nico Noronha, também falecido, lançou um livro sobre a A História dos Gre-Nais.
No dia 16 de maio, prenúncio inconsciente de seu próprio desfecho, publicou a crônica “Quando Quis Morrer”, com enorme repercussão entre os leitores de Zero Hora e internautas nas redes sociais. Vá em paz, meu amigo! Ainda nos reencontraremos.
“Quantos dias mais me cabem? Não sei. Felizmente não sei. Mas, sejam quantos forem, o que espero deles é poder termina-los olhando o sol que se põe, talvez sorrindo para alguém que amo, talvez fazendo um brinde à vida, ou apenas dizendo para mim mesmo: tem sido bom.” David Coimbra, em trecho da obra “Hoje eu Venci o Câncer”.
Amigão, quero acreditar que a gente vá se encontrar nesse outro plano, falar do Bernardo, Theo e Laís, futebol e outros assuntos mundanos, entre acepipes e chopes…
Até…