Há seis décadas, no dia 4 de janeiro de 1960, morria, aos 46 anos, Albert Camus. Ganhador do Prêmio Nobel de 1957, o escritor franco-argelino consagrado por romances como “O Estrangeiro” e “A Peste”, foi vítima de um acidente automobilístico. Viajava de carona a Paris com o sobrinho de seu editor, Gallimard, quando o carro perdeu o controle em uma reta e se chocou contra uma árvore.
Não teria eu, obviamente, a pretensão de empreender uma análise literária ou filosófica da obra de Camus, mero leitor de alguns de seus livros que sou.
Minha intenção é mais singela. Registrar a efeméride dos 60 anos, usando-a como pretexto (para isso servem as datas redondas…) para fazer um recorte de sua rica trajetória, conectando-a com o momento atual em nosso país. Curiosamente, foi a partir de uma pesquisa acadêmica relativa ao Direito que relembrei de Camus, lendo o excelente livro – aqui tomado por referência – de Tony Judt (ele mesmo outro interessante personagem), “O Peso da Responsabilidade”, que encontra intersecções nas ideias e nas posturas de Léon Blum, Albert Camus e Raymond Aron. E o mote foi a descrição de um traço comum aos três: o da coragem de contrariar não apenas seus oponentes, mas também seus pares, pagando um alto preço por isso – especialmente o da solidão.
Camus, além da disposição para o embate, do destemor de contrariar intelectuais à sua esquerda e à sua direita, tinha contra si a origem social, geográfica e acadêmica. Filho de família pobre, órfão com um ano de idade do pai combatente na Primeira Guerra, oriundo da Argélia (“pied-noir”, dizia-se então), tendo estudado fora do circuito nobre das “grandes écoles”, era tolerado, até mesmo apreciado, mas nem sempre assimilado como um dos seus pela elite cultural parisiense.
O jornalista de Combat, o dramaturgo de “Estado de Sítio”, o romancista de “A Queda”, o ensaísta de “O Mito de Sísifo”, o filósofo que se revela ao longo de sua obra são facetas de um homem múltiplo. Definia-se, entretanto, como apenas um artista. Sartre, a quem teve como amigo e desafeto, inscreveu-o na tradição francesa dos moralistas. Fruto de sua história e de seu meio (ou de não estar no seu meio), Camus foi muitos. Em todos, porém, buscou ser verdadeiro, ainda que lutando com suas contradições. Sua filha, Catherine, bem o resumiu no subtítulo da biografia que escreveu: “solitário e solidário”. Solitário por independente; solidário por humano. Dois adjetivos não definem um homem, mas podem dar a chave para entendê-lo. Era solidário aos seus contemporâneos que, na mesma condição humana, vivenciavam o absurdo – conceito fundamental em seu pensamento – de ser.
Absurdo que o levou a afirmar que “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio.”. E era solitário por desagradar tanto aos que, na manada indiferenciada, apenas rejeitavam os que dela destoavam, quanto àqueles que, percebendo as diferenças, invejavam a coragem de quem as apontava, omissos que eram em fazê-lo, por covardia ou interesse.
Antecipando-se em muito ao fenômeno das fake news, Camus produziu ao menos três pérolas sobre as consequências da manipulação da opinião pública. A primeira, ao dizer: “Os fatos são os fatos. E quem diz que o céu é azul, quando é cinza, prostitui as palavras e prepara a tirania.” A segunda, pinçada de uma palestra por ele proferida na – quem diria? – Porto Alegre de 1949, ciceroneado nela que foi por, dentre outros, Erico Verissimo e Guilhermino Cesar: “Toda ideia falsa termina em sangue (…)”. A terceira, pontificando: “A imprensa livre pode, sem dúvida, ser boa ou ruim, mas, seguramente, sem liberdade ela não será jamais outra coisa que não ruim.” Mesmo com o prestígio de militante da Resistência francesa na Segunda Guerra, Camus teve na questão da Argélia e na crítica ao totalitarismo soviético seus momentos críticos de confronto com a intelectualidade orgânica.
Contestou tanto a tortura como método do exército francês quanto o terrorismo como estratégia dos insurgentes argelinos, o que o fez alvo de críticas pelos dois lados do conflito. Denunciou a iniquidade do totalitarismo, retratada nos campos de concentração stalinistas, que emulavam, com sinal invertido, a barbárie nazifascista, caindo em desgraça com a comunidade cultural francesa de então.
Ainda assim, naquele cenário de polarização radical dos anos 50, Camus escreveu: “Nos últimos vinte anos (…) detestamos tanto nossos adversários políticos locais que acabamos preferindo qualquer outra pessoa, mesmo ditadores estrangeiros.”
E constatou, com precisão: “A direita deu à esquerda direitos exclusivos sobre a moralidade e recebeu em troca um monopólio do patriotismo. A França perdeu duas vezes.” São frases que remetem à situação análoga pela qual passamos no Brasil, quadro cuja descrição é desnecessária, e que leva à pergunta: seria ele hoje por aqui rotulado de “isentão”? É mesmo preciso reler Camus.
GERALDO DA CAMINO* Poeta e procurador do Ministério Público de Contas