A escalada de violência vista no período pré-eleitoral empurra o Brasil para um cenário semelhante ao experimentado atualmente pelos norte-americanos, de forte divisão social, diz o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), o jornalista Marcelo Rech. “Essa secessão que estamos vendo nos Estados Unidos, um país cindido, é extremamente danosa não só para o convívio social, mas para o futuro da nação. Nós estamos no mesmo caminho”, lamenta ele em entrevista ao site do Instituto Palavra Aberta. Para Rech, entretanto, há um instrumento seguro para mudar este cenário: o jornalismo, “que segue um caminho de equilíbrio, de moderação, de apresentar todos os lados de uma história, de diferentes opiniões”. Leia abaixo a íntegra da entrevista.
Estamos próximos de mais uma eleição, e há o temor de nova avalanche de desinformação, como ocorreu no pleito de 2018. Na hipótese de o fenômeno se repetir, qual é o papel da imprensa?
Acho que já está se repetindo. A estratégia é muito similar. Talvez ela esteja mais sofisticada, talvez mais sutil. Mas hoje nós estamos mais preparados. Acho que a imprensa está bem mais preparada. Eu não diria que nós fomos pegos de surpresa em 2018, mas a avalanche de desinformação foi muito intensa e, de lá para cá, a gente vem aperfeiçoando nossos mecanismos, promovendo alianças. Acho que uma coisa muito importante que aconteceu foi o surgimento de consórcios entre veículos de imprensa, entre jornalistas, veículos convencionais e novos veículos e com as plataformas também, além das organizações que são responsáveis pela eleição: TSE e tribunais regionais eleitorais. Verificamos a realização de eventos conjuntos, conferências, congressos, acordos, tudo no sentido de tentar reduzir o fluxo de desinformação no período eleitoral e também pré-eleitoral. Acho que estamos mais preparados e, mais do que isso, acho que a população está mais preparada. É verdade que ainda é muito fácil capturar corações e mentes das pessoas que não têm uma educação midiática avançada, que estão mais sujeitas a acreditar em falsidades, ainda uma certa ingenuidade, mas a gente percebe que os jovens são mais letrados, mais alfabetizados nesse novo mundo. Eles são menos propensos a acreditar em desinformação. As pessoas de mais idade, pouco letradas do ponto de vista digital, caem mais nas esparrelas que são disseminadas nas redes.
Como fica o jornalismo nesse cenário?
Muito antes do surgimento da expressão “fake news” já se defendia que, neste novo mundo digital, o nosso (da imprensa) principal papel não era mais a apuração, não era mais registrar em fotografia um evento. Ocorre que muito provavelmente alguém já chegou antes nesta apuração ou testemunhou algo ou uma câmera flagrou o acontecimento. O nosso papel central como jornalistas, isso já há 10 ou 15 anos – e se acentua cada vez mais –, é certificar a informação, certificar a realidade. No fundo, jornalistas e jornalismo são certificadores da realidade; são aqueles que põe o carimbo do que é ou não é autêntico; se isso é verídico ou inverídico; se é verdade, mas está descontextualizado. Essa certificação da realidade é o papel reservado ao jornalismo. Claro, ao assumirmos este papel, nós contrariamos – como sempre na história do jornalismo – os interesses daqueles que querem fazer da desinformação a sua alavanca de poder. Enxergam no jornalismo esse obstáculo, e ao fazer isso, a maneira de retirá-lo da frente é tentar desmoralizá-lo, tentar dar um carimbo de militância, de ativismo, de minar a credibilidade deste papel de certificador que o jornalismo tem.
Quais os limites entre o discurso de ódio e a liberdade de expressão?
Não vou entrar na questão conceitual porque aí é mais para o campo da filosofia, e acho fascinante a discussão. A liberdade de expressão é eu dizer o que entendo, mas os outros dizerem o seu pensamento mesmo que isso nos contrarie: Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-lo (Voltaire). Este é o princípio básico. Acho que no Brasil temos dois grandes alicerces que estabelecem limites a essa liberdade de expressão. Um deles é a Constituição, que várias vezes se refere à liberdade de expressão, à liberdade de pensamento e à liberdade de imprensa. Não pode haver censura prévia; ponto. Não precisa de licença para fazer uma publicação. E tem o princípio basilar, na minha opinião, que é o inciso 4 do artigo 5, segundo o qual é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Este é o ponto central da Constituição. Todo mundo é livre para manifestar o pensamento, mas não de forma anônima. Eu insisto nesse aspecto porque pressupõe a responsabilidade pelo que você diz, fala, escreve, enfim, se manifesta. Pode dizer o que bem entender, mas você é responsável por isso. O que isso significa? É que diante da lei você tem responsabilidades. Nesse caso, vamos ao código penal: calúnia, injúria e difamação. Atribuir crime a alguém que tenha cometido calúnia e difamação ou tenha atentado contra a honra. Isso está bem caracterizado na lei brasileira, está bem estudado, definido, embora obviamente haja divergências. Mas existem legislações referentes a isso no Brasil e em outros países. Na Alemanha, por exemplo, negar o holocausto é crime, está definido em lei lá, apologia nazista é crime na Alemanha. Nos Estados Unidos não é. Existem variações que fogem ao campo filosófico e tem a ver com a história dos países, isso está dentro do aceitável. Ninguém pode dizer que não é aceitável a legislação alemã que define a negação do holocausto como crime. Isso é totalmente aceitável diante do retrospecto que o povo alemão tem da Segunda Guerra Mundial. E ninguém está dizendo que na Alemanha não há liberdades de expressão e de imprensa por causa disso. É um tema fascinante que cabe a juristas, filósofos e jornalistas, mas o fundamento é ter responsabilidade sobre o que se diz. E as pessoas não se dão conta disso. Acredito que a educação midiática – na qual o Palavra Aberta faz um trabalho excepcional, de vanguarda no Brasil – é fundamental para que as pessoas também tenham consciência de que quando vão para as redes sociais e xingam alguém, ofendem alguém, fazem isso com palavras absolutamente grosseiras, elas podem ser processadas e condenadas, porque isso está na lei brasileira. Nada impede que alguém processe outra pessoa por calúnia, injúria e difamação e obtenha, muitas vezes, uma reparação financeira. Muita gente desconhece isso. Acham que o território da internet é um território sem lei, uma terra de ninguém, e não é. Claro, há peculiaridades, características, mas não é uma terra sem lei.
Clique aqui e leia a íntegra da entrevista no site do Instituto Palavra Aberta