O câncer de próstata é a neoplasia maligna de maior prevalência no sexo masculino, quando se excluem os tumores de pele não-melanoma, que na maioria das vezes trazem pouca repercussão
clínica. No Brasil, estima-se que mais de 70 mil novos casos sejam diagnosticados ao ano, o que corresponde a 30% de todos os cânceres em homens no País. Os números se assemelham ao que encontramos no sexo feminino quando avaliamos a incidência do câncer de mama.
Para ter uma visão mais clara, vale reforçar: a cada nove homens, ao menos um apresentará a doença ao longo da vida. O tumor de próstata também apresenta alta mortalidade. No Brasil,
em 2021 (último levantamento disponível) foram registrados aproximadamente 16 mil óbitos, o que faz com que o encontremos na 2.ª colocação entre os cânceres que mais matam, atrás apenas da neoplasia de pulmão. No País, são 44 mortes por dia em decorrência deste câncer, ou seja, a cada meia hora um homem perde a batalha contra a doença e vem a falecer.
Infelizmente, até o momento não há estratégias bem estabelecidas para prevenir o desenvolvimento do câncer de próstata. Entretanto, algumas escolhas podem reduzir o risco do seu aparecimento: manter uma alimentação saudável, hipocalórica, rica em frutas e vegetais e sem laticínios em excesso, fazer 30 minutos diários de atividade física e evitar a obesidade. Em resumo: aquilo que faz bem ao coração também é bom para a próstata.
Desta forma, como ainda não podemos evitar, grande atenção recai sobre o diagnóstico precoce. O câncer de próstata, se descoberto em estágios iniciais, tem enormes chances de cura. Em cinco anos, menos de 1% dos homens diagnosticados com tumor localizado, ou seja, restrito à glândula prostática, irão morrer da doença. Por outro lado, quando há metástases, isto é, o câncer saiu da próstata e atingiu outros órgãos, 70% dos indivíduos irão falecer por causa da neoplasia neste intervalo de tempo.
Sinais de alerta.
O câncer de próstata nas fases iniciais é uma afecção completamente silenciosa. Sangramento na urina, mudança do padrão urinário, dor e emagrecimento são sinais de doença mais avançada,
que talvez não seja mais curável. Então, para conseguirmos diagnosticar o tumor precocemente, precisamos detectá-lo quando ainda é assintomático. Para isso, é necessário o rastreamento ativo, ou screening, desta neoplasia tão frequente e potencialmente fatal.
Esse rastreamento é realizado por meio da dosagem do PSA (antígeno prostático específico), uma proteína normalmente produzida pela próstata e presente na corrente sanguínea de todos os homens, mas que pode apresentar níveis elevados nos indivíduos portadores do câncer de próstata; e do exame digital da próstata, realizado pelo toque retal. Esse exame, que dura menos de dez segundos, é indolor, não interfere na masculinidade/sexualidade e, além de ser barato, pode indicar a presença de nódulos (caroços) na próstata, que são sugestivos do câncer. Caso o PSA e/ou o toque retal estejam alterados, o paciente deverá ser submetido a uma biópsia de próstata, precedida ou não de uma ressonância magnética da glândula, a depender da disponibilidade do método e de questões relacionadas a acesso. Só essa biópsia será capaz de estabelecer o diagnóstico do câncer de próstata, bem como fornecer informações fundamentais sobre características que determinarão potencial agressividade.
Esta estratégia de rastreamento e diagnóstico precoce mostrou-se extremamente eficaz desde que passou a ser empregada, no início dos anos 90, e é a principal responsável por provocar uma queda de mais de 50% na mortalidade relacionada ao câncer de próstata.
Entretanto, a evolução clínica do câncer de próstata não é totalmente conhecida. Costumo usar uma metáfora para explicar aos pacientes que um especialista, ao ouvir “câncer de próstata”, equivale a um leigo escutar “cachorro”. Existem pit-bulls e existem poodle-toys! Ou seja, alguns casos podem se manifestar de maneira bastante agressiva, apesar de outros poderem ter um comportamento mais indolente. Estes últimos são aqueles em que o homem morre com o câncer, e não do câncer.
Por esse motivo, questiona-se se o rastreamento indiscriminado poderia trazer malefícios, pois levaria à realização de biópsias prostáticas desnecessárias, com seus possíveis efeitos colaterais,
como infecção e sangramento; além de causar o sobrediagnóstico e o sobretratamento do câncer de próstata. Esses termos descrevem situações nas quais diagnosticamos e tratamos tumores de baixa agressividade biológica, que não evoluiriam a ponto de ameaçar a vida, mas eventualmente provocariam eventos adversos, como incontinência urinária (escape involuntário de urina) e disfunção erétil (impotência sexual), com consequente impacto na qualidade de vida.
Esta genuína preocupação com os efeitos colaterais provocados pelo excesso de diagnósticos e de tratamentos fez com que, em 2012, um órgão americano não governamental e independente, chamado Força Tarefa de Serviços Preventivos (US Preventive Service Task Force), cometesse um grave erro ao recomendar que não mais se utilizasse o PSA como ferramenta para rastreamento do câncer de próstata. Essa recomendação se baseou em dois grandes estudos populacionais, repletos de críticas à metodologia empregada, com resultados contraditórios. Estatisticamente, ambos foram considerados negativos. Ou seja, foram incapazes de demonstrar, matematicamente, que o rastreamento melhora as chances de não morrer de câncer de próstata, ao passo que acarreta um número significativamente maior de diagnósticos, que poderiam ser considerados desnecessários.
Essa recomendação gerou enorme repercussão, recebendo duras críticas de inúmeros especialistas. E o tempo se encarregou de evidenciar que as consequências dessa conduta foram catastróficas!
Por um lado, aqueles dois estudos amadureceram. A mais recente atualização de um deles, publicada neste ano, comprovou que, após 21 anos de seguimento, o rastreamento diminui em 33% o risco de se diagnosticar uma metástase e reduz em 27% a chance de morrer do câncer de próstata. Além disso, outras evidências surgiram. Uma delas conclui que podemos prevenir uma morte por câncer de próstata a cada 221 homens rastreados e 9 homens tratados. Esses números são, sem nenhuma dúvida, estatística e, mais importante, clinicamente significativos!
Por outro lado, com a adoção do não rastreamento proposto pela Força Tarefa, nos EUA houve substancial redução da dosagem do PSA em todas as faixas etárias, acompanhada de declínio da solicitação de biópsias e, consequentemente, o diagnóstico do câncer de próstata caiu quase 40% até 2014. Em contrapartida, houve proporcionalmente importante aumento na incidência de tumores localmente avançados e metastáticos. Em termos práticos, muitos homens perderam a oportunidade de saber o que tinham e foram condenados a tratar tardiamente uma doença muitas vezes incurável.
Este tratamento da doença mais avançada se faz primordialmente por meio da castração (química ou cirúrgica), bloqueando a ação da testosterona, que pode acarretar inúmeras consequências físicas, como disfunção erétil, perda da libido, fadiga, anemia, diminuição da massa muscular, osteoporose, entre outros; e psicológicas, com sérias consequências sobre a qualidade de vida do paciente. Os dados contra o posicionamento da Força Tarefa se tornaram tão contundentes que, em 2018, o órgão voltou atrás e indicou que a decisão para realização ou não do rastreamento deveria ser individualizada, aproximando-se mais do que propõem as Sociedades Americana de Urologia e de Oncologia, Europeia de Urologia e de Oncologia, Brasileira de Urologia e de Oncologia, entre outras. Todas estas recomendam o rastreamento do câncer de próstata, a partir de 45 a 55 anos, com diferentes periodicidades (variando entre 1 e 4 anos entre as consultas), e reforçam que indivíduos com maior risco, como os pretos ou aqueles homens com histórico familiar de câncer de próstata, precisam iniciar a investigação cinco anos mais cedo do
que a população em geral.
Entretanto, para surpresa de toda a comunidade urológica e oncológica do Brasil, no dia 9 de outubro passado o Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica que reafirma sua posição anterior, de
2015, e corrobora a posição do Inca e da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, recomendando o não rastreamento populacional do câncer de próstata.
A elaboração do documento contou com a participação de psicólogo, enfermeiro, médicos com residência em saúde coletiva, saúde da família e da comunidade, medicina preventiva e social e até de um respeitado oncologista, que se dedica mais aos tumores torácicos.
Infelizmente, assim como ocorreu com a Força Tarefa americana em 2012, nenhum urologista, uro-oncologista ou qualquer outro especialista em câncer de próstata ou tumores urogenitais assina a nota, que em sua referência bibliográfica só inclui estudos até 2019, quando excetuadas as diretrizes de instituições e sociedades médicas.
Essa atitude anacrônica nos coloca no mesmo cenário dos EUA de mais de dez anos atrás. E, se não tomarmos providências, nossos pacientes infelizmente poderão ter as mesmas nefastas consequências vivenciadas pelos americanos nos anos que se seguiram à idêntica recomendação naquele país.
Além disso, sabemos que no Brasil o acesso à saúde varia muito e não há dúvida de que o não rastreamento precoce trará piores consequências justamente para o grupo socioeconomicamente menos favorecido.
Então, é urgente uma mudança na posição dos nossos órgãos que definem as políticas de saúde. Não rastreamento corresponde a predefinir o destino de muitos homens, que estarão impedidos de
decidir livremente se desejam ou não serem avaliados quanto ao risco de terem câncer de próstata. Para reduzir o sobrediagnóstico, parece-me muito mais razoável recomendar que o PSA seja utilizado de maneira racional, com repetição da dosagem em caso de alteração, solicitando-se biópsia prostática apenas para aqueles em que se ratifica uma elevação substancial deste marcador.
Outra medida oportuna seria a mais ampla disponibilização da ressonância magnética, que ajudaria a melhor selecionar indivíduos que realmente se beneficiariam da biópsia. Além disso, nos casos diagnosticados, é mandatório estratificar a agressividade da neoplasia e, para aqueles casos de menor risco, pode-se indicar a vigilância ativa, que consiste num protocolo de seguimento no qual fazemos exames periódicos para garantir que a doença permaneça com as mesmas características, propondo-se tratamento com cirurgia ou radioterapia caso haja alguma mudança nas características da doença, sem prejuízo para as chances de cura quando bem indicada. Dessa forma, os malefícios do sobretratamento seriam minimizados.
Vamos encarar o câncer de próstata com o devido cuidado!
Artigo originalmente publicado em O Estado de São Paulo