Para ser lido ao som de Tom Zé em Um Oh e Um Ah
Felipe Vieira* estreia na AmaJazz escrevendo sobra a entrevista que fez com Tom Zé em que o repórter ouvia e o entrevistado tinha a sua pauta própria
Uma entrevista com Tom Zé. À distância. A ideia é fazer um passeio musical pela vida e obra de um dos criadores do Tropicalismo, mas ele se nega a repetir o que já disse e está registrado. Ele não tem tempo a perder e quer apresentar novas ideias e ideais. Segue sendo um sujeito que explica para confundir e confunde para esclarecer. Foi isso o que pude constatar no domingo, 13 de setembro, quando o entrevistei ao vivo para o canal Band News TV, junto com Eduardo Castro e Marcello D’Angelo. Havia preparado uma pauta extensa: Tropicália, jazz, David Byrne, literatura, jardinagem… Impossível: ele tinha uma pauta própria e nos fez viajar nela. “Eu sou um viajante, nasci na Idade Média e sou um viajante desses tempos passados. Isso está muito presente em minhas músicas, não é uma coisa de ficar vagando com um negócio intelectual, bate logo na cabeça do assunto”.
Ao falar da sua condição nordestina, o verborrágico Tom Zé remete o seu “DNA musical” às viagens ultramarinas e aos sertões. “Em 1565 se iniciaram as primeiras incursões do litoral brasileiro para o interior, não ainda as Entradas e Bandeiras, mas uma espécie de viagem precursora e ali houve o primeiro encontro com os nativos. Por suposto, também a coincidência do encontro musical, porque havia uma tradição de musicalidade e sonoridade nos índios, ainda hoje isso é muito presente, a dança também é uma forma de desenvolver o espírito”.
Baiano de Irará, 84 anos no próximo dia 11, Antônio José Santana Martins nasceu no sertão, filho de um dono de uma loja de tecidos do pai, local que também foi seu primeiro emprego. No final da década de 50, ele transferiu-se para Salvador onde participou de um concurso de calouros intitulado Escada para o Sucesso. Interpretou Rampa para o Fracasso. E venceu. Na mesma época, estudou música na Universidade Federal da Bahia, onde conheceu Caetano, Gil, Gal e Bethânia.
Apesar de tropicalista com participação no disco inaugural do movimento em 1968, Tom Zé só subiria na escada para o sucesso cerca de duas décadas depois, quando David Byrne, então líder dos Talking Heads e que viera ao Brasil lançar o filme Stop Making Sense, comprou um disco dele. O resultado foi a contratação do baiano pelo selo Luaka Bop e o reconhecimento internacional de um homem que já havia decidido retornar à Bahia, onde iria trabalhar num posto de combustíveis de um parente. Na entrevista, Tom Zé lembrou que David Byrne redigiu o prefácio de sua biografia publicada na Itália.
Durante a conversa de 30 minutos, o homem irrequieto que inventou um “órgão de eletrodomésticos”, teclado elétrico que aciona enceradeiras, liquidificadores, geladeiras, batedeiras e centrífugas, continuou em sua viagem pelo tempo. “No século 12, a Europa foi invadida pelos árabes, povo mais desenvolvido naquele período, adiante dos europeus em medicina, música, poesia e arquitetura. Por óbvio isso resultou num amálgama cultural e descambou também na musicalidade. Quando o português chegou aqui, trouxe junto esses séculos de cultura miscigenada incorporados à península ibérica, onde o Oriente permaneceu até a expulsão ‘definitiva’ durante as Cruzadas, embora os resquícios da cultura islâmica tenham resistido, incorporados”.
Tom Zé contou também que nos anos 60 ele se deixou influenciar pelo espírito viajante, ao compor sobre a chegada do homem à Lua, citando ficcionista Arthur Clarke. Sobre a sua chegada a São Paulo, resumiu: “Minha viagem de chegada a São Paulo foi como um Marco Polo aportando na China e disso eu fiz o disco Grande Liquidação”.
Durante nosso encontro virtual era possível perceber que uma voz vinda do fundo do quarto dele o lembrava de fatos e de nomes esquecidos. Tom recebia o auxílio luxuoso de Neusa, companheira fiel e apaixonada, conhecedora de todas as suas histórias. “Neusa é a pessoa mais intelectualizada dessa casa. Metade das coisas que sei é porque a consulto dia e noite”. Neusa Martins é o anjo da guarda de Tom Zé. “Sombra à frente”, como ele define a mulher, amiga, produtora, mãe e faz-tudo. Estão juntos há mais de 50 anos, desde o fim dos anos 60, quando ela, recém-chegada de Ribeirão Preto, assumiu a tarefa de entrevistá-lo, após assumir o encargo no lugar de um jornalista que ficara inseguro. Foi paixão à primeira (entre) vista, nunca mais se separaram.
Genial e inquieto, não para de criar e se arriscar. Se nega a ficar repetindo o que já fez e segue desafiando a si próprio e aos que ousam tentar compreender a extensão da sua inteligência e criatividade. Durante a pandemia, o músico octogenário que já pisou nos principais palcos do planeta e quase foi esquecido pela humanidade aderiu às Lives em plataformas de redes sociais e YouTube e segue espalhando sua música. Há alguns dias foi entrevistado por um repórter do NYT. “Ele quis saber onde eu trabalho. Eu disse é aqui nesse quarto. Se tiver ar, eu entro respirando. Se tiver água, entro nadando. Se tiver fogo, eu vou como salamandra”.
* Felipe Vieira, o autor, se apresenta: “Sou jornalista formado pela PUC mas com atuação desde os 13 anos, quando estreei na Rádio Sobral, de Butiá, minha cidade natal. Entre 1989 e 1999, atuei nas Rádios Gaúcha, CBN e Itapema FM e também na RBS TV, TVCOM. Passei ainda pela Band, Guaíba e SBT. Atualmente sou âncora do BandNews TV e publisher do site com meu nome”. E eu acrescento: é também um grande amigo e admirador de jazz e blues, em especial B.B. King. (Márcio Pinheiro)